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segunda-feira, 25 de junho de 2012

sexta-feira, 22 de junho de 2012

sábado, 5 de maio de 2012

Diário da Manhã - 6/5/2012

BANDIDO SEM CHORO?!

Lêda Selma

– Pura perda de tempo, doutor...
– Perda de tempo? Como, perda de tempo, indivíduo?
– De tempo. De trabalho. De autoridade... Chega de repetição: prende, solta, prende, solta... Brincadeira de polícia e bandido?
– Comigo não tem brincadeira, ouviu?
– Se até com os federais tem, imagine com os estaduais... Acorda, doutor!
– Que atrevimento! A PF tem feito um trabalho digno e de utilidade social.
– E eu não sei? Os federais não vacilam em serviço, para azar dos bandidos, os de pedigri lustrado, de terno e gravata, que, por sinal, não têm mais sossego. E eu lhe pergunto: tanto corre-corre, grampeia, escuta, prende, e aí, dá no quê?! Não acaba em pizza à moda habeas corpus?
– Na verdade, não posso desmenti-lo... Mas que cada um cumpra o seu dever! Você está detido, pronto!
– O doutor quer me prender? Mas aviso: será por pouco tempo. O senhor prende, ele solta! O habeas corpus, o mais competente milagreiro dos novos tempos. Os bandidos graúdos não vivem mais sem ele. Um perfeito facilitador da classe, doutor, benza Deus!
– Pelo visto, você está bem informado...
– Bandido que se preze... Além do mais, tenho amigos influentes, infiltrados em tudo, especialistas em várias modalidades criminais.
– Quer me intimidar, é? Amigos influentes...
– Uma cachoeira deles. E não é sandice ou lereia, hem?! É coisa do demo... Assustei o doutor?! Minhas torres estão ligadas, chego lá de asa delta, o delegado não duvide! Quer me prender, prenda! Mas tenho certas exigências!
– E, porventura, bandido tem querência?
– O doutor tá desatualizado. Bandido graduado manda, não pede! E se o senhor bobear, peço transferência.
– Que petulância! Transferência...?
– Para Brasília! Regalias aos montões! Além do quê, melhor, perto dos homens... Os “figurões” que o digam...
– E bandido merece regalia, sujeito?
– Não merece, exige, é diferente, doutor! No meu caso, já fiz uma lista modesta...
– Vou é encaçapar você agora mesmo, isso sim!
– Eu fico, mas tenho cá minhas manias...
– Bandido com manias... Ai, meu Deus, quando criança, certamente, dei umas “sardinhas” no bumbum do meu anjo da guarda, só pode!
– Pois é, delegado: a cama tem de ser king size – preciso de muito espaço pra espalhar essa fartura de músculos, ó! –; o colchão de mola com uma camada generosa de espuma por cima; edredom hipoalergênico, alcochoado com plumas de silicone; travesseiro anatômico, em ‘v’ – é muito bom pra coluna –; lençóis com 200 fios egípcios; ar condicionado e, se a umidade relativa do ar estiver baixa, umidificador em plena ação, já!
– Olhe aqui, indivíduo, chega de deboche! Quer gastar minha paciência, quer?!
– Sua paciência, não. O dinheiro do bobo, isto é, do povo, sim, dinheiro pouco e sempre ludibriado pelos famigerados impostores...
– Tramele essa matraca, senão...
– Senão o quê, doutor?! Só por que não sou empresário, nem político, não tenho nextel, nem moro no tal condomínio, é? Pois saiba que, se quiser, entro no padrão, logo que sair daqui.
– É, você já sabe do esquema...
– E olhe, se não fosse a impertinência desses federais desmancha-prazeres, já tinha providenciado uma casinha, daquelas modestas de lá, afinal, se existo, posso me casar; se me caso, devo ter filhos; se for menina, devo lhe preparar o futuro e, nada melhor, um imóvel por lá mesmo, é mais fácil; assim, evito correria para minha futura filhinha quando do seu possível enlace. Não sou bandido sem choro, tenho prestígio com o “homão”, com o “maior”, hem? Amigo serve pra quê? Pra ministrar o que for preciso, ora essa! Quero é relaxar, afinal, quem procura dor, acha! Mas será o Benedito?!
– Já chega de trocadilhos sem eira nem beira.
– Sem eira nem beira, delegado? Me poupe! Sou esperto, assunte: se vacilarem, num bom goianinglês, I marco ‘one’ voo, em avião de um amigo, e me abalo para o paraíso final: a residência da dinheirama da turma. As ilhas dolarizadas, doutor! Uai!

sábado, 28 de abril de 2012

Diário da Manhã - 29/4/2012

E SÃO PAULO, LÁ, ASSISTINDO A TUDO...

Lêda Selma

Não me lembro se por motivos culturais, gastronômicos, sociais ou familiares, estava em São Paulo quando, numa tarde-noite úmida e friorenta, conheci o italiano Giovanni Bruno, pequeno homem de estatura humana grandiosa, poeta dos versos de vinhos, musicados pelo espocar do champanhe de nobre linhagem, artesão das massas, anfitrião da noite, maestro da alegria. E, Santo Dio, só mesmo alguém tão especial seria capaz de batizar seu restaurante com o poético nome “Il sogno di Anarello”! Saravá, Dom Giovanni Bruno, o acendedor incansável de sonhos!

Lá, no tradicional e famoso restaurante, frequentado por celebridades de todas as patentes, brasões e pedigris, ouvi casos curiosos, reminiscências de infância, estripulias de verdadeiros “anjinhos” no fulgor da meninice. E, entre gargalhadas e gozações, um deles mostrou porque havia sido o menino mais castigado da rua. Pelo menos uma vez na semana, ganhava uma tremenda pisa do pai; pisa, taca, surra... que, de tão doída, fazia da salmoura um carinho dos deuses. E foi o próprio quem deu o ponta-língua inicial:

– Estávamos brincando de esconde-esconde. Meu irmão caçula, sonso, mas julgando-se muito esperto, foi se esconder atrás de um monte de palha de milho, fiado na certeza de que dava sua cartada de mestre e, por conseguinte, não seria descoberto. Logo, percebi seu feito e tratei de exibir minha tenacidade: corri até a cozinha, apanhei uma caixa de fósforos e ateei fogo nas palhas. Moço, o moleque pulou feito cabrito, rasgou a roupa às pressas e correu pelado feito filhote de cruz-credo, gritando qual um desvalido: “Mãe, tão querendo me empamonhar, socorro!”.

Ainda com o riso aceso, um outro rememorou:

– E aquele malfeito, na véspera de São João, quando você amarrou um buscapé no rabo do cachorro daquela vizinha ranzinza e fuxiqueira? O pobre, desentendido, desabalou numa cachorreria tão doida, latindo um choro esquisito, que nem mais sabia quem era: foguete ou vagalume? Por mais que tenha vivido, morreu com essa dúvida.

Se morreu... – pensei, penalizada. Aliás, nem o mais competente cachorrólogo seria capaz de lhe estancar tal trauma. O infeliz, naturalmente, imaginou estar, no mínimo, enfoguetado. Que maldade! E justo com um cachorro?! Ora, todos sabem, o coitado é foguetófobo! Se naquela época já atuassem os defensores da classe, Deus me livre, o menor infrator, no mínimo, seria apreendido.

Pois é, várias tardes e noites cumpliciaram encontros divertidos. Em algumas, São Paulo voltou às suas raízes: vestiu-se de garoa. E nos vestiu com casacos. E nosso frio, com vinho. Ah! e as lembranças, com saudades! Eta terra de excelentes opções culturais e de comedorias não à prova de gula.

Bem, como nada neste mundão sem eira nem algibeira é perfeito, andei desafinando na música e tropeçando no passo. E só conto o sucedido por força de coação de algumas testemunhas do fato, e que, de um modo ou de outro, já foram alvo, dizem, de minha “indiscrição felina”, ao torná-las personagens de meus escritos. Como a melhor desfeita é o destaque, entrego-me, parodiando certo adágio: um dia é da criação e o outro da criadora. Ih! o meu chegou... Ah! um lembrete preventivo: sou morena de nascença!

Tudo por causa do meu celular: de humor instável, emburrou e preferiu a mudez. Relegada à condição de usuária de telefone público (a propósito, “orelhão” é fumante? Só pode: e o fedor de tabaco!), iniciei minha aventura, procurando o orifício de entrada do cartão. Difícil, mas encontrei, após vasculhar todo o perímetro telefônico, claro! Então, parti para a outra fase: o encaixe. E encaixei o bendito, ou melhor, o maldito. Uma, duas, cinco tentativas e... cadê a linha?! Nenhum som da sumida. Intrigada, busquei socorro. E, para minha grande surpresa, ouvi, entre risos e ironia:

– O “orelhão” não aceita cartão de crédito, criatura! Só o telefônico, este aqui, ó!

Momento poético:

O medo me induz ao fosso,
o sonho, à ousadia.
No medo, guardo silêncios;
no sonho, pecados.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

RISÍVEL POR NATUREZA - Diário da Manhã - 24/4/2012

Lêda Selma

De novo, ela, a morena nortista e suas excentricidades vocabulares. Antes, por pura simploriedade. Hoje, pelo desejo incontido de mostrar-se “sabida” e a par das coisas, afinal, voltou à escola e, então, viu o mundo, até há pouco, estranhamente grande e quase inacessível, de repente, caber em sua cabeça e em seu quarto. A vontade de aprender, de exibir aprendizado e conhecimentos tornou-se um jogo diário. O interesse por quase tudo propiciou-lhe novas expectativas desembocadas em algumas descobertas. E assim, ela, “moça solteira” (mas desejosa de ser elevada à categoria de senhora), toda autoconfiante e sempre com a espontaneidade a lhe ditar posturas e palavras, incorporou a seu já folclórico vocabulário outros tesouros de raríssima originalidade. E, vaidosa, faz questão de exibir-se para mim, esnobando seus conhecimentos: “Pensa que não sei o que é parafro (parágrafo)? Sei sim. E sei também que é errado falar vi ela. O certo é falar a vi. Istordia mesmo, eu a vi o porteiro do prédio lá no camelógrafo”.

Mal cheguei do Araguaia, e ela, toda informativa: “Morreu um colego seu, um tal de Jorge Amado. E é colego de cabo a rabo: escritor, baiano, diabrético e imortal. Como priguntar num dá incômodo, imortal é quem não morre? Inda bem que nunca aquerditei nisso!”.

Há pouco, flagrei (sem querer, mas adorei!) uma conversa entre ela e uma colega de curso e de ofício doméstico:

– É verdade que sua patroa é culta?

– Assim, tipo escritora?

– É.

– Ah! então, é!

– Deve de falar chique que só...

– Hum, até passada da conta, cruz credo, disconjuro! Ela vai pegar o óculo e fala “meus óculos”. Aí, boto reparo, corrijo, e ela diz que do seu jeito é que é certo. Vê se pode: tá usando um só e quer dar parecença de dois. Então, pruquê já num fala também meus sutiãs? Óia, gente, isso nem é cultura é inzibideis!

– Se é...! Patroa simples já gosta de botar banca, imagina, então, patroa quiném a sua...

– Ela é um pouco esquisita, sim. E só sendo mesmo pra inventar tantos causos e ponhar no jornal e nos livros. Já vi dizer que esse povo artista é tudo destrambelhado, vive doidejando; e eu acho que é verdade. Inventar tanta história desacontecida e tanta pessoa de mentira, mas óia...

– E ela deve falar e escrever cada palavra, dessas que ninguém entende, né?

– É cada uma de fervecer a miolada. Cê conhece uma tal de glicose e uma outra tal de insulina? Acho que é coisa do sangue, sabe?...

– Chiiiii! Até o sangue é diferente?

– É. Óia, siá, e me causa até sufocação ver ela tirar o sangue da cabeça do dedo, quase todo dia, pra botar no apareio e depois dizer: “Minha glicose tá alta” ou, então, “minha glicose tá boa”. Acho que quando tá alta é pruquê o sangue raleou, sei muito bem não.

– E num podia dizer só sangue em vez dessa palavrada toda? Pelo visto, até o sangue de escritor tem nome chique, né? Mas de que adianta se é raleado? E a tal da insu... insu o quê? É sangue também?

– Insulina. Acho que é. Num diz que temos uns tais de glóbus vermeio e branco? Pois é, acho que a insulina é o tal do branco. E mal ela acorda (e antes de dormir também), espeta a barriga e mete insulina na dita. Deve de ser pra devolver o sangue tirado ou então pra engrossar o esfraquecido, sei muito bem não.

– Coitada! Ser escritora é fogo, hem?! Além da pessoa ficar destrambelhada, ainda tem sangue raleado... Que esquisito!

– Esquisito mesmo. E o pior: nem pode comer doce ou chocolate! Diz que é pra num entrar em coma (acho que coma é um jeito que a morte tem de chegar de fininho, assim, de viés, antes da hora, e pregar surpresa no escolhido). Só que – ai, ai! –, ela come escondido.

– É... escritor sofre, mas, pelo menos, é inteligente.

– Ela não é muito, não! Já deu rata a torto e a direito, pra lá de demais. Istordia mesmo, falei que meu primo doente tava com propocação e ela nem sabia o que era isso. Então, tive de desmiudar a explicação e falar soletrado e bem visível: pro-po-ca-ção. Ele tá com o corpo todo pro-po-ca-do. Foi aí que ela entendeu.

sábado, 14 de abril de 2012

Diário da Manhã - 15/4/2012

CAPRICHO DA SANTA
Lêda Selma

Quando criança, católica praticante por formação e opção. Adulta, optei pela modalidade semipraticante, por preguiça e descrença, reconheço. Devota de Nossa Senhora de Fátima, a preferida de minha mãe (que saudade!), dizem, deveria adotar, como minha protetora, Nossa Senhora da Abadia, que divide o15 de agosto comigo. Até tentei aceitar a sugestão, mas ainda não criei vínculos ou estreitei alguma intimidade com a Santa. Assim, não uso o tráfico de influência, em nome dessa afinidade natalícia, para conseguir favores na Instância Superior. No entanto, como Nossa Senhora, na verdade, é uma só, apenas o nome varia de acordo com a fé ou os interesses de cada localidade, por tabela, quando a necessidade acocha pra valer, peço socorro à Mãe Maior, e atenda-me a que estiver mais livre, pronto!

Tenho mais liberdade, mais confiança, mais abertura e pontos em comum com Maria (inclusive, uma Sexta-feira da Paixão) do que com o Todo-Poderoso. Além do mais, ela é mulher, mãe e, por certo, compreende melhor as angústias e os problemas femininos e maternos. Por isso, bato longos papos, ou melhor, monólogos com a Mãe de Jesus. Por falar em seu filho, gosto muito dele, lamento todo o sofrimento que lhe foi imposto pelo próprio Pai (a humanidade o mereceu...?!), e não me faço de rogada caso precise de sua intercessão.

Com os evangélicos, discordo em alguns pontos. Por exemplo, a afirmação de que o católico adora imagens. Francamente! Isso me irrita e me leva à indignação. São contra as imagens sacras, mas e as esculturas, as fotos espalhadas em suas casas nos porta-retratos, independente de serem de filhos, amigos, animais? Também, são imagens, ora, o que não significa, de forma alguma, que sejam adoradas, quer por católicos, quer por evangélicos, ou melhor, protestantes (que o diga Lutero, ex-padre agostiniano), pois evangélicos são todos os que aceitam e seguem os evangelhos! Portanto, o fato de alguém possuir uma ou mais imagens não quer dizer que as adore, que fique bem claro!

O fanatismo tira-me do sério, independente do credo do fanático.Não o tolero mesmo. Mas, como há os que atraem bêbados, chatos e outros similares, também tenho um ímã que atrai fanáticos. Um deles, ela, no caso, esturricou meu humor justo no lançamento do meu livro Até Deus duvida! Chegou, possessa, à mesa em que eu o autografava e, dedo em riste, chispas nos olhos e badalo na língua, começou esbravejar: – Como tem coragem de suspeitar de Deus?! Isso é coisa de satanás! O Senhor não duvida de nada, Ele sabe tudo, e vai castigar sua ousadia, vai condená-la pelo desrespeito! Jogue fora esse amontoado de ofensa ao Senhor, se quiser escapar das labaredas do fogo!”. Fixando-a, ironizei: – Vou arriscar. De repente, o inferno está lotado, minha passagem não foi ainda providenciada, ou talvez Deus queira ler o livro antes de me sentenciar... Assim, os livros ficam, e você vai! Só falta escolher: sozinha ou acompanhada? Pela polícia, claro!

De volta ao assunto das imagens, há um fato interessante, acontecido recentemente. Uma amiga ‘evangélica’, pessoa evoluída e consciente de sua fé, adoeceu gravemente. Então, eu e outra amiga dissemos-lhe que pediríamos à Nossa Senhora de Fátima que a acompanhasse durante o tratamento, mesmo sabendo-a descrente do poder da santa, pois sua igreja não admite a santidade da mãe do Senhor. A enferma mostrou-se agradecida e emocionada com nosso carinho, e aceitou-o de pronto.

Tempos depois, minha parceira de oferecimento foi a Portugal e trouxe-lhe um ímã com a imagem de Nossa Senhora de Fátima. A presenteada, sem piscanejar, colocou-o na porta da geladeira.

Certo dia, o pastor avisa-lhe que a visitará no fim de semana. No afã de evitar mal-entendidos e chateações, pediu à filha que guardasse o mimo. E veio a surpresa: a Santa embirrou e não saiu do lugar. Modelo ‘daqui não saio, daqui ninguém me tira!’. Nenhum esforço, tática ou instrumento auxiliar, nada conseguiu demovê-la da decisão de lá permanecer. Mais uma tentativa, mais outra, e a Santa impassível, decidida, fazendo-se de sonsa, alheia a todo aquele furdunço.

Já se passaram semanas, e Maria, altiva, não arredou o pé da geladeira. Como se dissesse, vencedora: diga ao pastor que fico!

domingo, 8 de abril de 2012

TRANSFORMAÇÃO - LÊDA SELMA

A travessia é libertária,
e nos transporta para a margem
onde a lua se esparrama,
e o grão brota, cria, recria,
e dissemina ramadas
sob aragens de inverno.

Na libertação, o atalho
para o cimo e para o voo.
E, na bifurcação que atordoa
dilemas, descrenças e medos,
a passagem para o sonho,
e as sanhas em estiada.

sábado, 7 de abril de 2012

UMA QUENGA DAS BOAS - 8/4/2012 - Diário da Manhã

UMA QUENGA DAS BOAS


Lêda Selma


– Olhe, amigo, ontem me refestelei como há muito não fazia.

– E foi? E a refestelança se deu de que modo, homem?

– Do modo que todo homem merece, ora!

– Virgem, e foi?! Mas que mal pergunte ao amigo, como foi?

– Vou principiar pelo início. Bote tento e aguce os ouvidos, hem!?

– Tento boto, e redobrado, e os ouvidos já afiei. O amigo principie.

– Primeiro, escolhi a pretendida. Então, montei o cerco, fiquei
de vigília e encantoei a danada.

– Hum!... a danada, é? E aí, danou-se!

– Nem tanto. Já na primeira investida, ela se esquivou e fugiu...

– Quer dizer que a danada pôs a fuga no trote e desfeiteou o amigo!?

– Mas insisti. E de novo. Corre aqui, escapa ali e ela esperneando...

– E entre um esperneio e outro...

– Segurei com força a bendita que, desassossegada, arrepiou e
rebundeou...

– E entre um arrepio e um rebundeio...

– Ela se rendeu.

– Rendida, rendida, em seus braços, siô?!

– Também, pudera: eu ali, resolvido, com o fôlego alterado, o
desejo pidão...

– Um felizardo, o amigo! Aí num quieto, num calado, sonso que só...

– Ah! e que coxas, criatura! De aguar a boca, os olhos, a vontade...

– Principalmente, a vontade...

– Bem, vou desativar o princípio e ativar a continuação...

– Virgem, e é aí que a coisa vai esquentar...

– Ainda não, se aquiete! Antes da esquentação, tem o ajeitamento, ora!

– Bem lembrado. Ao ajeitamento...

– Dominei a fulana e, no maior capricho, apalpei tudo e deixei
a tal peladinha.

– Que suadeira, amigo! Pe-la-di-nha, peladinha?! Desnuadinha? Em pelo?

– Em pele. Pele e carne. E quanta abundância...! A peitaria, então, que fartura!

– Valei-me, protetor dos invejosos! Farta, sim, é a inveja que
me desarvora...

– Compostura, homem...!

– Sim. Mas deixe de lado a continuação e chegue logo na consumação.

– Se acalme! A pressa é inimiga da detalhação. Como lhe dizia...

– Peladinha, com as coxas, peitança e abundâncias a seu dispor...

– Eita gastura a sua, homem! Ajeite o desajeitado e me escute, criatura!

– Bem sugerido! Então, pe-la-di-nha... Ai, o que abunda sempre agrada!

– Pois bem, nuinha e no ponto pra virar quenga! Uma quenga corpuda, deliciosa...

– Quen...ga?! Assim, quenga, quenga?!

– Quenga, homem, quenga! E quenga de primeira.

– Modelo quengão? Quenga gostosa, cheirosa, carnuda...

– Quenga de primeira, das melhores. Encorpada, aloirada, cheia de suculências e quenturas...

– Minha Virgem, por piedade, uma sobrinha que seja! Ih! não é de bom tom abordar tal assunto com uma virgem, ainda por cima, santa! A senhora me desculpe o mau jeito...!

– Sobrinha? Que mal há? Afinal, somos amigos. Por que não...?

– “Por que não...?” O amigo quis dizer o quê?

– Que vou lhe ceder a quenga!

– O amigo descerebrou!

– Ela está ali, ó, no descanso... E quenga dormida é boa por demais...

– Minha Virgem, acuda o homem maluquecido! Me ceder sua quenga?!

– Sim. Ou o que restou dela. Depois de ontem à noite...

– E que noite, posso até imaginar...!

– De revirar os olhos! Ela sobre a mesa, remexendo-se, hum,
ao mais simples contato...

– O quê...?! Em cima da mesa? O amigo, pelo visto, abusou...

– Até me fartar, ufa! E, como lhe disse, a quenga é sua agora.
Dê um trato na dita e sacie seu desejo!

– O amigo perdeu de vez a compostura?! O que é isso?! Me ceder a quenga depois de uma noitada...! Se atipe, siô! Essas modernidades me assustam, ora se não!

– Deixe de colisa! Ande, a gostosa está à sua espera! É só afogueá-la e...

– Pare de troçar comigo, moço! Vê se pode: eu e a quenga do amigo, em sua própria casa!

– Eu mesmo vou reanimar a cheirosa e deixá-la no jeito pra você, sossegue!

– Espere aí! O amigo extrapolou e até me ofendeu. Liberdade tem fronteiras.

– Tome tenência, homem, e venha logo, venha, venha se adonar da saborosa...

– Me adonar da... Por favor, amigo, judiação tem limite! Já vou é embora. Até!

– Espere, calma! Se adonar, sim, da galinha, homem leso, que virou quenga ou, se preferir, engrossado de fubá! Bom apetite!

Momento poético:

Pelo quarto,
meu vulto polarizado,
meu perfume (feitiço de cobra)
e um poema sem segredos.

A ferida vermelha
– bem aqui do lado esquerdo –
fechou a dor e degredou
buscas e sonhos embrionários.

No roupeiro,
o vestido de linho
e a camisola de seda
dizem tudo de mim...

sábado, 31 de março de 2012

CONFUSÕES DO SACRISTÂO - Diário da Manhã - 31/3/2012

CONFUSÕES DO SACRISTÃO


Lêda Selma


A igrejinha, como sempre, cenário dos grandes acontecimentos. E das grandes emoções. Visitada diariamente por donzelas inconformadas com suas donzelices crônicas, tinha, como destaque, no altar à direita, o preferido das solteironas, o alcoviteiro-mor, Santo Antônio, padroeiro municipal e afamado arranjador de casamentos. À esquerda, com a timidez ou cara de preguiça, à mostra, São Benedito, cujas habilidades santísticas, francamente, desconheço.

O coitado – coitado! – (refiro-me a Santo Antônio), sequer dispunha de um minutinho de folga para suas necessidades mais básicas. As casadouras não lhe davam trégua. Tampouco, os desmazelados que, volta e meia, perdiam até a conta de suas perdas, convertidas em futuros achados, por obra e competência do santo, apelidado, carinhosamente, de dois-em-um. Porém, seus ouvidos suplicavam por um descanso, exaustos de tanto ouvir lenga-lengas intermináveis.

O estoque de donzelas parecia nunca se esgotar, pois havia sempre alguma à cata de marido. Assim como as tais “coisas perdidas” que se amontoavam e geravam piedosos pedidos e, consequentemente, farturentas promessas. Plantão, pois, diuturno, o do pobre. E cansativo. É, vida de santo não deve ser fácil mesmo. A do santo polivalente, então...

Acostumado a testemunhar os apelos das donzelas insatisfeitas e com os desejos queimosos à flor de seus recantos secretos, o sacristão peralta, que muito gostava de se imiscuir na vida alheia (e já enfarado de tanto ouvir as mesmas lamúrias), resolveu fazer mais uma das suas, ao ver certa esperançosa, cujas vontades também saltavam das protuberâncias intumescidas, embicadas sob o decote da blusa, desviar-se do santo casamenteiro, ajoelhar-se diante da Virgem Maria e pedir-lhe:

– Minha Santa, quero tanto um homem bom (e olhe, não precisa ser respeitador), desimpedido, carinhoso e aliviador dessa quentura que me desassossega as intimidades, me aperreia o sono e destrambelha meus sonhos. Me ajude, Mãe! E não me venha indicar aquele santo embromador, não, o tal Santo Antônio, porque dele já estou descrençada. Só conto mesmo é com a senhora pra me tirar dessa consumição, e dessa sina que me condenou ao desuso. Morrer no caritó, com selo original de fabricação, que até já deve estar vencido, é muito desprivilegio, minha Mãe. Não permita que eu termine meus dias como uma rebenqueada da sorte, por piedade! Portanto, marido já, se avie, ande!
Escondido atrás da imagem de São Benedito, para confundir a queixosa da vez, o sacristão, com a voz adulterada, e fazendo-se passar pelo santo, aparteou:
– Não ajuda não, Nossa Senhora! Deixa essa aí morrer endonzelada, avexada e sem as serventias que ela muito deseja.

– Cala a boca, afro enxerido, santo destruidor da ilusão alheia, que não tô falando com você nem com esse seu pareceiro incompetente, visse? Tô falando é com a Virgem, que, apesar de virgem, é mulher que nem eu e deve entender das minhas precisões...

Mas o sacristão tinha também suas manias e excentricidades. Supersticioso, colocava, todas as noites, as alpercatas de frente para a porta, como se estivessem de saída e, a seguir, pendurava a velha boina cor de ferrugem, no trinco, sempre com a aba para cima. Ah! antes de dormir, tomava ‘uma dose dobrada de chapuleta’, e dava um gole gordo ao Santo, sempre com o mesmo argumento: “Um agradinho ajuda o santo a se alembrar dos amigos na hora das necessidades. Só periga, como de certa feita, eu, já trolado, exagerar na dose do santo, e ele ficar azuretado, de pileque”.


Momento poético:

Mesmo os corações blindados,
as palavras ferem como baionetas.
São devastadoras se infames
e mortais quando silenciosas.

sábado, 24 de março de 2012

Diário da Manhã - 25/3/2012

AMBIGUIDADES

Lêda Selma

A língua portuguesa (especialmente, a “brasileira”) é rica em apelidos. Tanto para nomes próprios quanto para comuns. E o pior: a maioria nenhuma relação possui com o original. Na Bahia, então... Laurinda vira Lousinha; Maria, Lica; Olga, Pequena; Emília, Bida; Justina, Sussu; Esmerilda, Catita; Escolástica, Tatá; Tomasina, Totote; Zenóbio, Sinhô; Almerinda, Nana... Para moça desdonzelada por vontade das quenturas íntimas, um acervo e tanto de significados: deu um mau passo, perdida, desonrada, sem lacre, bulida... E as que se firmaram no ofício da ‘perdição’: quenga, mulher corrida, mulher de rebuço, decaída, ervoeira, ambulatriz...

Outras preciosidades dão um certo charme à famosa cachaça, muito conhecida como pinga e, também, como aguardente ou branquinha: ventania, fôlego-quente, matusquela, tiririca, aço, água-dura, água-bruta, água-de-briga, baronesa, tiúba, sinhazinha, arromba-peito, quebra-goela, gafanhoto, brutamontes, donzela, tasca-aqui, lambisgoia, reco-reco, abstinência, quero-colo, xixi-de-cobra, samba-enredo, lusco-fusco...

Apelidos, codinomes, alcunhas, pseudônimos, cognomes, criptônimos... não importa. O certo é que, às vezes, causam tremendas confusões e ambiguidades, como no caso de determinadas bancárias, muitas delas “letradas”, algumas, incautas, outras, místicas e, em comum, adeptas ou fanáticas por cartomancia, quiromancia, numerologia, tarologia e tantas outras enganologias (os demais adeptos perdoem-me o ceticismo).

Pois não é que as tais codificaram umas fugidas suspeitas, em pleno horário de serviço, e acabaram arranjando a maior confusão? E, justo, com o austero gerente do banco, homem de aparência mal-ajambrada, rosto sem riso. voz áspera e inquisidora:

– Cadê a Inocência?

– Foi ao cardiologista.

– Então, chame a Vivalda.

– Saiu um pouquinho mais cedo para ir ao cardiologista.

– Peça à Credulina para vir à minha sala.

– Impossível! Ela marcou horário com o cardiologista.

Preocupado com tamanha incidência de visitas ao tal especialista, o jeito, decidiu o gerente, investigar o problema responsável pela evasão das bancárias durante o expediente. Para tanto, convocou, com a urgência aparentemente requerida, o cardiologista do banco para um checape nas funcionárias, já aventando algumas hipotéticas causas: excesso de trabalho, preocupações familiares, problemas financeiros, estresse, baixo salário, pressão do chefe, arrelias conjugais...

Estetoscópio, pra que te quero...?! O médico começou a examinar as pacientes, auscultando-as. Uma, duas, três... e nem o menor indício de problema. Surpresa geral: em nenhuma das checapeadas detectou-se qualquer anomalia cardíaca. Nem um soprinho básico, nada. Nada...?! E a taquicardia? Taquicardia até intrigante. O coração De Inocência, de Vivalda e Credulina, acelerado que nem velocista em dia de competição, ou vento em rota de fuga, ribombava. Lívidas e trêmulas, as examinadas aguardavam o veredito médico.

Desentendidos, o gerente e o doutor quiseram saber o que estava acontecendo, interpelando-as. Quiseram. E ficaram querendo, roídos pela curiosidade, pois as ‘taquicárdicas’ não ousaram destravar a explicação, nem desatar o pacto silencioso que lhes impunha cumplicidade. O coração, entalado na garganta, ou na boca, em contínuo saio não saio, por certo, o maior impedimento para o segredo escapulir.

Mas, na surdina, e sob discrição, uma olheira contumaz rompeu o silêncio quase sepulcral, e decifrou o impasse.

Bem, como não assumi compromisso de guardar segredo, sinto-me livre para espalhar o acontecido: as crédulas irrecuperáveis deram aos tais ‘bem dotados de espírito’, também conhecidos como videntes, cartomantes, tarólogos (às vezes, charlatões) o apelido-disfarce de ‘cardiologista’. Por precaução e, mais ainda, por esperteza, claro! Principalmente, porque as saídas para as “consultas” davam-se à hora do trabalho. Portanto, algumas das taquicardias detectadas, durante o exame, estavam mais do que esclarecidas. E o medo de serem descobertas e apanhadas com as calças, ou melhor, com as cartas na mão?

Momento poético:

O medo me induz ao caos,
o sonho, à ousadia.
No medo, guardo silêncios;
no sonho, pecados.
No fosso, minhas sobras.

sábado, 17 de março de 2012

Diário da Manhã - 18/3/2012

ORA, BOLAS!

Lêda Selma

Bola? Não, não queria ser, de jeito maneira. Até porque ela é gorda, desengonçada, bochechuda. Nem elegante nem estilosa. Menos ainda, se chamada de bolota...

Sem dúvida, a dama dos gramados tem poder, o que a faz sentir-se com a bola toda. Sem modos, dá bola a vinte e dois homens, simultânea e levianamente, e rebola, embola-se com eles na grama, passando de mão em mão, de pé em pé, insinuante, em boleios de volúpia, deixando seus súditos às tontas, ou, como se diz no Rio Grande do Sul, “como bola sem manicla”. E assim, com a bola cheia, age, às vezes, como se não batesse bem da bola.

Verdade seja dita: não é fácil ser bola. A pobre não tem sossego: é bolinada, chutada, pisada, manipulada; ora amada por vários, odiada por uns, desejada por tantos, temida por muitos; ora acarinhada, beijada, cortejada. Tudo isso, claro! deixa-a bolada.

Ah! e os vexames por que já passou em função dos mal-entendidos e do uso inconveniente de seu nome!? “O treinador levou bola nas costas”. Sim, e daí? O que a gordota tem com a maldita traição?! Azar o do traído, ora bolas! De outra vez, alardearam: “Ele comeu a bola”! Isso foi demais, que acinte! Um bolodório daqueles, até que a explicação veio: “O jogador é bom, fez jogadas primorosas!”. Que alívio! No entanto, se for o cão que comeu bola, aí, o pobre já virou extinto.

De novo, constrangimento: “Então, você entrou com bola e tudo?”. Baita indelicadeza! A bola da vez merecia mais respeito. Entretanto, logo trataram de explicitar: “O atacante, voraz, driblou o goleiro, e entrou no gol com a bola”. Ufa!

Certo engraçadinho confundiu todo mundo: “Hum... aquele, lá, engoliu a bola!”. Para sossego da própria e dos ouvintes, o fulano referia-se a uma bela jogada do companheiro.

Sustos? Alguns. Foi o grito quem anunciou: “Bola ao alto”! Quem não se apavoraria, imaginando-se assaltado?! Felizmente, tratava-se, apenas, do lançamento da bola entre dois jogadores. Doutra feita, alguém enfatizou: “Bola presa”! Nossa, até a ficha cair, a pobre já se viu algemada. Mas, no rolar da bola, ficou claro: nada mais que simples infração. Todavia, susto, susto, ela levou ao ouvir o tom desesperado: “Ai, ai, ai, machuquei as bolas!”. Bem, nesse caso, a vítima dispensou quaisquer comentários. Mas que deu dó, ah! deu!

Tudo isso, no entanto, é fichinha perto de situações muito piores e que, de uma forma ou de outra, mesmo por tabela, deixam a bola em posição incômoda. Aconteceu quando diversas “Excelências”, a tevê e os jornais disseram, “levaram bola”! Não, não surrupiaram a bola; o tal surrupio foi bolada mesmo, bolada farta, espalhada na cueca, nas meias, na bolsa, na mala, também conhecida como suborno, propina. Essas “Excelências”, políticas, empresariais, judiciárias e policiais, sempre bolam formas mirabolantes de fraudar o país. Assim, pisam feio na bola. Merecem bola preta esses bolas murchas!

Há, entretanto, outro tipo de bolada, estilo pancada mesmo, que atinge a maioria dos brasileiros, a cada imposto, a cada CPI, a cada sessão extraordinária ali, lá e acolá... O jeito, partir para o bolão na tentativa de diminuir o prejuízo. Arre, é tanta bolação que corro o risco de até trocar as bolas!

O importante é que, de bola em bola, o gol enche a rede para a felicidade geral das cores e distintivos. Que assim seja na Copa de 2014. Mas, por favor, Seleção, chega de bola quadrada, tamanhos vexames estão virando bola de neve, credo! Mano, você periga receber uns bolaços, hem?! Então, bola pra frente!

Não tenho bola de cristal, mas sei que a coisa está afro! E que, em 2014, a bela, ao rodopiar toda dengosa pelos gramados, busque sempre a alcova branca da rede (do time adversário, naturalmente!) para a cópula com o gol.

Momento poético:

No silêncio do olhar ausente
se esconde a dor e refugia o medo
e morre o sonho que se fez finito.
............................................................

quarta-feira, 14 de março de 2012

DIA 14 DE MARÇO - DIA DA POESIA

POEMAS DE LÊDA SELMA:


O SILÊNCIO




O silêncio é sarcástico:
se cínico, entorta mentiras;
se cético, morde risos;
se sóbrio, camufla verdades
expostas em sorrisos
ocultos na alvura do nada.


PECADO DE AMOR



Zeus quedou-se em agonia
ao se apaixonar por Leda,
bela humana, mas não, deusa.
Como Zeus, o deus dos deuses,
amaria tal mundana?

Ah! que sina tão medonha,
que amor mais desvalido,
um deus, ali, combalido,
por um amor doidivanas!?

– Pecado de amor é fastio
em banquete de maçãs,
é espora mordendo esperas,
é corredeira de rio,
é palavra em carne viva,
oblação que chegou tarde –
gritou Zeus, em desvario,
carregando Leda nos sonhos.

Um vento morno de estrelas
rodopiou noite inteira,
e roubou da madrugada,
onde a lua espreguiçava,
penugens lindas de hortênsias,
para a alcova ou a mortalha,
o que o destino escolhesse.

– Destino...?! Traçarei sua trilha! –
decidido, Zeus bradou,
pronto para aliciar o destino
pelo amor da humana deusa!

E em meio a um céu de opalas,
em noite alcoviteira,
um cisne todo galante
amou Leda impunemente...

Ah! que sina venturosa,
que abastado prazer:
um deus, ali, feito em cisne,
e um templo feito em mulher!


FÚRIA POÉTICA


O poema arregalou a boca
e mostrou-me terríveis mandíbulas,
enquanto seus dentes rilhantes
trituravam-me as palavras.

E os estilhaços dos versos
fugiram desarvorados,
em rastejos se lançaram,
e sumiram dor adentro.



AMOR E SAUDADE


Não sei dos rouxinóis
que te fugiam da boca
e pousavam em meu pescoço...

Não sei das ramagens de seda
que se erguiam em teu corpo
e me cortejavam o desejo...

Não sei do suor goteirando
– de alguma calha da lua –
em nossos corpos de vidro...

Só sei desta saudade matreira
– que ainda me sacode e incita –
e deste amor quase morto.

domingo, 11 de março de 2012

Diário da Manhã - 11/3/2012

RETOQUE NO CASAMENTO...?


Lêda Selma

Padre Rocha, não afeito a excessos afetivos e a ostentações de carinho, conquistava sua messe com seu jeitão sincero e impulsivo, sem meias palavras ou entrelinhas. Não sugeria nem metaforizava, era direto e sucinto, no mais puro baianês. E se um “filho” ultrapassasse as cercas da moral, o jegue torcia as fuças, balançava o rabo e preparava o coice.

A batina, tão antiga quanto o dono, tinha a medida de sua precisão, incluído um bolso interno, aconchego para a “safada”. Calma, o padre era celibatário convicto! A tal aconchegada? A garrafa de cachaça, também conhecida como capote de pobre e suor de alambique.

Certa vez, o médico aconselhou o padre a só beber uma dose ao dia. E ele, de pronto, aquiesceu: trocou o copinho de bar por um copo americano. A dose era mesmo diária: o copo cheio. De outra, proibido de ingerir a piribita, foi flagrado com um litro da própria, no esconderijo batinal. E foi logo à justificativa: “Estão olhando atravessado por quê?! Esta pinga é para curtir pimenta malagueta; depois, só tomo o caldinho, oxente!”. Detalhe: no litro quase cheio, jazia apenas uma solitária malagueta. Ah! e ai de quem o tivesse por cachaceiro! “Cachaceiro é quem fabrica cachaça, oxente!”, furibundava.

O casamento de Virgelina, uma lindeza! Festa grande, do tamanho das terras do seu pai, rico fazendeiro.

A sociedade de Espinosa, cidadezinha que separa o norte de Minas do sudoeste baiano, no caso, minha Urandi, preparava-se para atravessar o rio Verde, divisa dos municípios, para assistir ao casamento de um seu filho ilustre com a não menos ilustre herdeira do abastado fazendeiro urandiense. E, para fugir dos imprevistos, quase sempre previsíveis (como um gole a mais do caldo da malagueta curtida), severa vigilância foi montada, durante todo o dia, nas imediações da casa paroquial.
Tudo caminhava bem até que o céu se encheu de negrume e, de sua garganta, grunhidos assustadores anunciaram um toró de meter medo.

– Vai trovoar até o dia aparecer, amanhã, com cara de abilolado – palpitou alguém.

– E bem no dia do casamento da caçula? Santo Deus, é sinal de desando, de azar! – afligiu-se a mãe da noiva.

– Vou falar com o padre – anunciou o pai, com ar de descrença.

– O casamento foi marcado para hoje? Então, será hoje – esbravejou o padre, sacudindo os paramentos como se os desamassasse.

– Mas a chuva inundou a ponte, padre, e o noivo não tem como chegar aqui...

– O que eu tenho a ver com ponte ou com chuva? Resolve isso com quem despachou a intrometida para cá, e provocou todo esse bolodório, ora! Daqui a pouco, farei a celebração. Quero todos lá, para as bandas da ponte, em uma hora.

A noiva e seus convidados, em trajes de gala respingados de lama, encontraram-se às margens do rio, cuja ponte, completamente alagada, inviabilizava qualquer transposição. Do outro lado, o noivo e seu séquito e a mesma impossibilidade.

– Se os noivos, o padre e as testemunhas estão presentes, e Deus já mostrou que também está, nada de embromação. Darei início ao ato religioso, que é da minha conta; o outro, da conta dos nubentes, seja o que a chuva quiser. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. Estamos reunidos para a celebração do casamento de Virgelina e Constâncio. Vocês vieram aqui, isto é, ela aqui e ele lá, de livre e espontânea vontade, para se unirem em matrimônio?

– Sim, padre! – a resposta dos desolados noivos.

– Ih! esqueci a água benta! Mas serve a da chuva mesmo! Benzerei a aliança da noiva e, simbolicamente, a do noivo... O que Deus uniu não o separe o homem e, menos ainda, a chuva ou a ponte! Trate o noivo, logo, de arranjar uma pedra ou garrafa. Agora, amarre no arranjado o dinheiro devido a esta cerimônia, e jogue para cá, com muito cuidado.

– Padre, esta celebração valeu?

– Melhor, quando Deus der bom tempo, e a ponte, permissão, passarem lá na igreja para um retoque na cerimônia.

Momento poético:

Viver é extrair dos sonhos
até mesmo suas fuligens.

quinta-feira, 8 de março de 2012

MULHER SIMPLESMENTE:Lêda Selma

Carrego em mim
tantas marias
e em meu ventre,
sangue, estrelas e fomes.
Se me querem santa,
maçã ou serpente,
se me querem seda,
seios ou lua,
me mostro Maria
de todas as dores,
me torno Maria
de todas as cores,
me faço esfinge
ou mulher simplesmente.

DIA INTERNACIONAL DA MULHER

E POR QUE SIM?

Lêda Selma


É, mal principia março e, a toda a brida, chega, de batom e esmalte, botox e silicone, o cantado e recantado 8 de março, “Dia da Mulher”, dia de se outorgarem comendas, títulos e mimos àquelas que, desde o finado segundo milênio, caminham decididas, e quase imbatíveis, por trilhas nunca dantes imaginadas, em busca de espaços e conquistas. E, depois da queima dos sutiãs (bem antes do silicone), lembraram-se da lei da gravidade, imposta pelo tempo, e retornaram os indesejados para o guarda-roupa e, em consequência, à disposição dos interessados. Melhor prevenir que os ver despencar.

Um só dia é pouco. Todos. No mínimo, incontáveis. Se for para questionar a função da mulher nas várias vertentes da vida, 365 dias é absurdamente pouco. Nesse caso, melhor inventar um tempo maior. Todavia, se for só para homenageá-la... hum... os 365 já quebram o galho! Nada de dispensá-los.

Sou contra o “Dia da mulher”. Acho-o apenas alegórico, discriminatório e inócuo. Dia de luta? O que se resolve ou se decide nesse dia: a roupa para essa ou aquela solenidade? Com qual sorriso se receberá a flor? Todos os dias são de luta. E os resultados consistentes, reais e significativos vêm daí. Não somos mais minoria, sombras, espectros, marionetes... Não estamos mais “atrás de um grande homem” (e se o tal fosse pequeno, qual seria nossa posição?). Não monopolizamos mais o “trono” de “rainha do lar”, há “rei” também nele. A abolição daquela velha doutrina que relegava a mulher à categoria de “sexo frágil”, outra conquista feminina.

Um dia não nos basta mais. É bom que se lembrem de que o avental cedeu lugar ao terninho; o fogão, à mesa de trabalho; a vassoura, ao teclado (éramos rainhas ou bruxas?!), e estamos por aí, ativas, eficientes, “chefes” de família, comandando, encabeçando listas de concursos, de vestibulares, de frentes de trabalho. Presidentas, ministras já não são novidade (nem no Brasil). Mudamos valores machistas e constitucionais, rompemos as barreiras das profissões “masculinas”, tornamo-nos donas do nosso corpo, do nosso destino, do nosso prazer. Abdicamos da condição de objeto sexual (só se é, hoje, por opção ou por gosto). Conquistamos muito, mas, claro!, não ainda o bastante, bem o sabemos. Apesar disso, não há motivo para que nos discriminem com o “Dia da Mulher”. Existe o “Dia do Homem”?

No passado, a instituição de um dia, com a chancela de “protesto”, para lembrar e repudiar o massacre contra as mulheres americanas, primeira fresta de acesso feminino à contextura real, foi válida. Mais que isso: um marco que abriu os olhos do mundo para o verdadeiro “padecer no paraíso”, alcunha de ostracismo, de não-direito à genuína cidadania, de confinamento a um mundo do tamanho de uma casa, de uma mulher-mãe (abnegada, despojada, delicada...) e de mulher-esposa (virtuosa, carinhosa, prendada...). Era só o que nos permitiam ser. Abrimos as portas de inimagináveis amanhãs, escancaramos as janelas do futuro, descobrimos a vida e reivindicamos nossos legítimos direitos. No decorrer dos tempos. Não em apenas um dia: simbólico e anual.

Um senhor disse-me: “Vou exigir que a mulher abra a porta do carro e puxe a cadeira para mim. Ah! e depois, pague a conta do restaurante e do motel. Direitos iguais, deveres também”. Aviso a quem interessar possa: não conte comigo nesse item. Cavalheirismo sempre!

Independente do dia 8 de março, minha homenagem às mulheres e, em especial, à minha mãe (que saudade!), de grandezas tantas.

sábado, 3 de março de 2012

Diário da Manhã - 4/3/2012

MANCADA E TANTO

Lêda Selma

O namoro estava engrenado. Bastava que Distraildo, recém-formado em psicologia, moço direito, bonitão e de boa família, mas nem tanto assim de memória, usasse seu charme para manter sob custódia emocional a almejada Dulce, moça privilegiada pela morenice esguia espalhada corpo afora e, em especial, nas fartas ondulações, salientemente empinadas. Um primor de mulher, cujos trejeitos enredavam fantasias e incitavam desejos masculinos.

A tarde já se preparava para acomodar sua bagagem às costas, e a agenda de atendimento ainda cheia. A secretária sorria só metade do riso, mas tudo bem, por certo, reflexo do cansaço. Também pudera: Distraildo, seu patrão, havia pegado no batente às oito da manhã; uma saidinha rápida para o almoço, apenas.

Realizado na profissão e quase feliz no amor, o jovem. Bem, o quase, só para o namoro, pois o processo de conquista, aos poucos, engrenava-se; questão de tempo e de jeito, nada mais, vaticinava.

De repente, em meio a uma sessão, Distraildo sentiu a lembrança cutucá-lo: aniversário da amada, a quase namorada! Puxa vida, tal esquecimento poderia custar-lhe a chance do namoro! Que indelicadeza, sequer, ter enviado à bela moça de curvas instigantes, pelo menos, umas flores! (Meu São..., São..., Santa... ah! quem estiver mais desocupado, pronto! Seja lá o santo que for, faça um milagre rápido, segure o tempo para que haja tempo de eu remendar minha mancada, por favor! – cochicha a si mesmo em pensamento.

Desvencilhado do cliente, pede à secretária que ligue para a floricultura e encomende as mais bonitas flores. E que o entregador passe antes pela clínica para apanhar o cartão.

Todas as floriculturas estavam fechadas, avisou-lhe a secretária. – E agora, o que farei? Santos incompetentes, nem pra me darem um dedinho de ajuda! – resmunga, enquanto, na maior afobação (outro paciente já o aguardava), folheia a lista telefônica, como à cata de um milagre. E ele acontece:

– Boa-noite! Casa das Flores Feliz M...

Ainda com o coração em correria e a cabeça conturbada, nem esperou a moça, do outro lado da linha, completar a saudação.

– Preciso de umas flores, as mais bonitas, urgente! Fica a seu gosto escolher o arranjo, o buquê, o que for. Deixarei o cartãozinho, o endereço para a entrega e o cheque com minha secretária, peça ao entregador para vir à clínica antes, entende? Olhe, você é linda, tudo é lindo!

Aos pulos, desliga o telefone, cantarolando: Obrigado, São... ou Santa... ah! todos os santos, e desculpem o mau jeito de agora há pouco, sim, aquela bronca. Mas que valeu a prensa, valeu! Eu não podia facilitar, nem lhes conceder moleza, ora!

A aniversariante, Dulce, estava eufórica. Muitas flores, muitos presentes, muitas presenças, enfim, um animado encontro de amigos. Até que, súbito, Dulce é chamada à porta. Desajeitado por sentir-se intruso, e pressentir que algo estava errado, o rapaz é direto:

– Vim lhe entregar essas flores, moça. O cartão está junto. Não tenho nada com isso.

Dulce empalidece ao ver aquela imensa coroa, enfaixada com os seguintes dizeres:
“Vida eterna e muita paz!”. E, depois de ler o tal cartão, desmaia. Alguém o encontra no chão e põe-se a lê-lo: “As flores representam tudo o que lhe desejo nesse dia especial: que a envolvam como em um abraço e lhe cubram o corpo com suas pétalas perfumadas, até que sinta o coração se aquietar e a alma voar para um passeio ao sol; então, com os olhos fechados, encha de luz o momento tocado pela imensidão, e chegue à estrela. Saudades. Com amor, Distraildo”.

O rapaz nunca entendeu por que, ao chegar para a festa, já não havia festa. Tampouco, a esquiva da amada, sempre que tentou se aproximar dela. Ofendido, desistiu. Não sem, antes, concluir: Mulher é raça estranha. E ainda dizem que homem não sabe ser romântico. Nem as flores, nem as palavras melosas do cartão emocionaram aquela infeliz. Para mim, ela está morta. Morreu no próprio dia do aniversário.

Momento poético:

Há sempre um sol
dentro do sonho.
E uma solidão
em cada silêncio.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Diário da Manhã - 26/2/2012

SEM SERVENTIA

Lêda Selma


Inacreditável! Uma leitora brasileira, que se diz ‘rabiscadora de poesia nas horas vagas’, no fulgor de seus 93 anos, residente no Texas, e-mailizou-me: “...Sou sua leitora assídua, e, quando morava em Ribeirão Preto, li, já faz um bom tempo, no DM, um texto seu bem engraçado que falava de uma esposa desejosa de botar para escanteio o marido descumpridor das tarefas conjugais. Integro um grupo de senhoras e queria que elas lessem o texto, pois sei que se divertirão, mas não o encontrei na internet. Como encontrá-lo?”. – Aqui, dona Mariana. Republico-o em sua homenagem:

Agora é lei. E é para valer...! Ai do cônjuge que não desempenhar as funções para as quais se habilitou no famoso “Dia do Sim”! Maridos, cuidem-se: corpo mole, nem pensar! E ai da mulher que fraudar seu ciclo mensal em honra e glória de um premeditado descanso! Pois é, lei seca ou do menor esforço, no âmbito conjugal, coisa do passado. Portanto, ao desanimado ou preguiçoso, flagrado em negligência, a rigidez da lei.

Sabedora disso, certa esposa desditosa resolveu estrear a lei e buscar seus direitos. Pensou no Juizado de Pequenas Causas, todavia, desistiu: “Minha causa é enorme e precisa de um juizado maior, de grandes causas”. No entanto, logo soube que o tal mudou de nome: Juizado Especial e, então, animou-se ainda mais.

– É, meritíssima, o folgado, quer dizer, o arremedo de marido, no duro, é pura moleza. Pra ele, casamento é só mesmo o do sono com o travesseiro. Aquele outro, o prometido, jurado e sacramentado pelo padre, agora, só na lembrança. E, enquanto o espírito se ajeita com alguma distração, o pobre do corpo padece! A interessada, então, valha-me Deus!

– A senhora quer dizer que seu marido não tem marcado presença no leito conjugal?

– Digo, redigo e tredigo. E mais: vim denunciar o molenga, o sovina, o negligenciador do ofício noturno. O ridico só tem mesmo marcado é ausência. Presença? Só da soneira e do ronco.

– E a senhora já tentou conversar com o faltoso, isto é, com o marido?

– Pra mais de muitas vezes, meritíssima, bem pra mais...

– Talvez, uma estratégia nova, um temperinho diferente...

– Ah! tenho feito de um tudo, pode crer. Temperinho? Hum, temperão! Com óleo de dendê, malagueta e tudo o mais. E os disfarces então? Já me disfarcei de donzela, encarnei a vadia, empinei as protuberâncias, inventei remelexos e tremelexos e, mesmo assim, o maldito, o tal marido sem serventia, fugiu da lida. Feito cruz-credo fugindo de água-benta ou político, de eleitor, depois da eleição.

– Se a senhora está dizendo isso, e com tantas ilustrações, é sinal de que a situação está mesmo delicada. Bem, e a que pode ser atribuído tamanho desinteresse?

– A várias incompatibilidades: de desejos, de horário, de disposição...

– E quais as suas pretensões, com relação ao caso?

– Terceirizar os serviços do inativo. Sim senhora, abrir uma franquia. E tudo se resolverá: o enfastiado se refestela na moleza, o futuro operante mostra sua serventia e eu me livro da precisão. Assim, fica até mais em conta para o infrator, pois nem preciso apelar para uma indenização por danos conjugais.

– Melhor usar o bom senso: um diálogo franco, uma viagem a dois, um terapeuta de casais...

E, com cara de pouco marido, a juíza, após um relampejar de pensamento maroto, desveste o rosto da tradicional carranca e regozija-se num monólogo interior: “Meu marido, há muito, não tem me frequentado... Terceirizar os serviços do inativo... bastante pertinente.

E, então, com certo cinismo, conclui maliciosamente: “Se a queixosa quiser ouvir meus conselhos, ficar com o bom senso, com o diálogo ou com o terapeuta de casais que fique, porque eu, ah!, vou é tratar da tal terceirização. Uma franquia... Hum... e por que não?!

Momento poético:

... Já não me basta
o amor em combustão,
se tenho o sonho,
mas perdi a estrela.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Diário da Manhã - 19/2/2012

HAJA PACIÊNCIA!

Lêda Selma

Estava, mais uma vez, em uma sala de espera de consultório médico. Não que eu seja hipocondríaca, ou que tenha a saúde frágil. Não, não, apenas, mais uma visita de rotina ao médico. A propósito, hipocondríaca é certa amiga, daquelas de infância. Deus me aumente o estoque de tolerância!, a cada bate-papo com a tal que, diga-se, é de amargar! Por falar nisso, seu fígado é o culpado, acusa-o sempre.

Bom, já que abri parênteses, um exemplo da hipocondria da moça: desesperada, ligou-me, com jeito de despedida, certa noite. Se mal entendi, despedida eterna. Ah! o terceirizador de sua partida, o sangue. Engastalhado na urina, indicava-lhe estado terminal, garantiu-me. Tentei acalmá-la. Vã tentativa. “Estou desgraçada! Só espero o resultado do exame para selar, de vez, meu destino: a morte!”. Dia seguinte, novo telefonema, e a voz toda adocicada pelo alívio: “Ufa, não será desta vez, amiga! Pelo menos, por enquanto, não arredarei pé da vida. Não era sangue e sim, excesso de beterraba e de amora, acho que exagerei na ingestão de ambas!”.

De volta à sala de espera do consultório médico. Bem, de repente, como habitual, a intimidade entre desconhecidos faz-se a tônica da espera que, não raro, se arrasta, qual lesma claudicante, pelos corredores das impaciências dos pacientes. E novas bestagens enchem o espaço de inutilidades:

– Estou ‘exáustica’. Andei o dia inteiro atrás do meu ‘adevogado’ pra pegar sua ‘rúbrica’ e não encontrei o sumido. É por isso que coisa ‘gratuíta de graça’ não presta – pavoneava, com voz empostada e com gosto de esnobismo, uma mulher rechonchuda, de seios graúdos e balouçantes, prestes a escapulirem da blusa, boca enorme e excessivamente vazia. Não de palavras, claro!

Alguém se interessou pelo problema da madama, e foi aí que a fulana esbaldou-se na falação:

– Estou em ‘procéssico’ de divórcio. Meu marido arrumou uma ‘concubínica’ e o jeito foi tomar providências. Por isso, ‘instituí’ um ‘jurístico’ pra tomar conta do caso. Mas, haja ‘paciêncica’!

HAJA! – gritei interiormente, e, em súplia: Senhor protetor dos ouvidos aviltados, socorro! Esses ‘proparoxítonos’ forjados detonaram-me o humor e os ouvidos; melhor ser surda que ouvir asnuras! Leda fantasia, pois, enquanto audição possuísse, ouviria besteiras de variados calibres, a torto e a direito.

De outra feita, em um daqueles muitos recreios tão característicos do serviço público, ouvi de uma nortista muito engraçada, crítica e debochada (fazia troça até de si), minha colega de sala, alvo constante de suas próprias gozações:

– Um dia, li numa revista a palavra pérgula e achei chiquérrima. Copiei a maravilha pra não esquecer e, então, pensei: vou lascar esta joia numa conversa com letrados. Jamais consegui. Por mais que eu me esforçasse. Parecia até coisa feita, gente. Eu, doidinha pra exibir meu vernáculo, as chances aparecendo e, na hora H, ficava em dúvida e não me lembrava direito da maldita. Nunca sabia se falava na pústula, na pérgula ou no prostíbulo da piscina.

Momento poético:

Esta clareira aqui, sob o peito,
tem vazios, valas, lonjuras
e fósseis de amores tardios.

Nem mais ouço os alaridos
de meus sonhos chamuscados
sobre as peliças de outrora.

Mas sinto o rodopio do vento
grimpar ladeiras e flancos,
com a saudade nos ombros.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Diário da Manhã - 12/2/2012

E QUE VIZINHA...

Lêda Selma

Nunca morei em fazenda, aliás, nem mesmo em cidade do interior, apesar de interiorana. A bem da verdade, interiorana, apenas, de nascimento. Vim para Goiânia e fiquei. Para assentar pouso definitivo: enraizar-me, florescer e frutificar.

Pois é, embora não tenha desfrutado, jamais, de qualquer intimidade rural, sempre ouvi histórias sobre o companheirismo e a camaradagem naquelas antigas fazendas, onde quase todos eram compadres, no mínimo, duas vezes. A do meu avô materno (bem entendido, uma delas), a Boa Sorte, era ponto de chegada e de ficada de amigos e forasteiros, recebidos, sempre, com muita festança e hospitalidade.

Os vizinhos, então, eram “de casa” e, portanto, ai de quem usasse de cerimônia. Assim, o troca-troca de gentilezas verbais, gestuais e comestívas, praticamente, ritualística. E não era rara, mesmo naquele tempo em que o fio da barba selava o combinado pela palavra, a figura do espertinho ou, até mesmo, do aproveitador.

Nhá Piedade, senhora de fartas e balofas carnes, rechonchudos e balançantes seios, viúva convicta de nhô Simplício, sua meeira na pouca terra, nos parcos recursos e nos muitos filhos, destacava-se pela perspicácia e pelo espírito arrojado. Senão para o trabalho, pelo menos, para garantir, à sua moda e à custa das amigas e das comadres, o sustento da prole (a exemplo das ancas desengonçadas, nem um pouco modesta).

– Bons-dias, siá, vim fazer uma visitinha rápida, só pra não desacostumar o costume, sabe? E que Deus seja louvado!

– Seja, comadre, seja! E também que Ele tenha piedade de mim, ou melhor, de nós, no caso de algum carecimento; melhor um pedido preventivo que um remediativo, não é mesmo?

– Eita comadre, sempre cautelosa! Pois é, pedir nunca é demais. E por falar nisso, dei uma espiada de soslaio na despensa da comadre e, Deus seja louvado!, uma abundância de inchar a boca... Aquela conserva ali, então, hum...!, tá no maior desfrute com a compota. E as duas safadinhas não param de olhar pra mim, se insinuando, me instigando a modestas pretensões... A comadre não vai se importar se eu, me valendo da insistência de ambas, e aproveitando o assunto sobre pedidos, fizer o meu, pois vai?

A visitada já conhecia, de velho, a estratégia da visitante: mal chegava, despachava os olhos para a lida, ou seja, para bisbilhotarem tudo; vistoria completa. Depois, era só lascar, de uma tacada só, o pedido. Assim, tornava-se impossível qualquer recusa, pois o desejado já havia sido, previamente, localizado e apontado por ela; requisitá-lo, portanto, apenas, o golpe final.

Dessa forma, nhá Piedade, de visita em visita, assegurava a sobrevivência e o crescimento dos filhos. Um dia aqui, outro mais adiante... e, de pedido em pedido, a matrona enchia o saco, a paciência dos vizinhos e a pança dos meninos.

– Hum, que cheiro gostoso de café torrado, comadre Malvina! E aquelas fornalhas de biscoito, ali no forno, doidinhae pra eu levar uma delas pros meus bacuris famintos...?! Ah! e quanto pequi acolá, hem?! No pontinho, só esperando eu tirar os pobres das cascas e dar a eles o destino das panelas.

– Deus seja louvado, comadre Generosa...

– Amém, comadre!

– A louvação é praquele pilão ali, ó, cheio de paçoca, comadre! Me dê cá um bocado, me dê.

– Escute aqui, mulher pidona, se atipe, ora! A gente dá isso, a comadre quer aquilo. Só falta lhe dar o sorriso e a senhora querer os dentes; lhe dar a saia e a comadre querer as búndegas, só pra descansar as suas!

Momento poético:

Silêncio é vastidão do nada
e poesia, um colibri verdourado,
com hálito de primavera,
a polinizar desertos e escuridões.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Diário da Manhã - 5/2/2012

APOLOGIA AO PRESENTE

Lêda Selma

Os que se convenceram de que o ato de presentear é algo especial e o de receber, delicioso, pediram-me que republicasse minha apologia ao presente (alguns a desconhecem). Estávamos em um aniversário, momento por demais oportuno para conclusão honestamente correta, sem os ranços do etiquetamente correto. O texto diz:

Além de alegrar, encantar, emocionar, o ato de se oferecer um presente, mimo, lembrancinha a alguém cria um elo mágico entre presenteador e presenteado. Por quê? Ora, pelo motivo mais simples e terno que reveste aquele sentimento, que até faz cócegas, de sabermos que alguém, por alguns momentos, dedicou-nos parte de seu tempo, buscou fazer-nos um agrado ao colocar carinho e sensibilidade em um pequeno (e tão enorme!) gesto: deixar para o coração a escolha do presente.

Algo de primeiríssima necessidade, o presente. Pessoalmente, considero-o mais que imprescindível. Aliás, nem posso imaginar um aniversário, Natal, Dia das Mães, Dia dos Namorados... órfãos de presentes. E não me venham com o discurso (nem um pouco romântico e tão carregado de falsa razão) do “apelo comercial”. E o apelo emocional e afetivo, não contam?! É certo que o comércio fatura. Mas o presenteado também.

Não acredito na veracidade do chavão “Não precisava se preocupar com o presente, bastava a presença!”. Soa falso. Uma heresia, ou melhor, um sacrilégio (os dois, pronto!). A presença, sem dúvida, é fundamental. O presente também. Assim, não há por que se separar um casal tão bonito, elegante, da mais alta linhagem, semântica e socialmente harmonioso: presente e presença.

“Você foi se preocupar com presente!? Bastava só a lembrança!”. Lembrança... Ah! sim, o apelido do presente! Por falar na tal, que ninguém deixe de se preocupar em me oferecer um presente. Faço conta, e muito, dessa preocupação. E não me venha com “não repare eu não ter trazido uma lembrancinha...” Reparo. E como!

Sempre considerei esteticamente feias as mãos que chegam a um aniversário desacompanhadas. Solidão constrangedora! Uma entrada nem um pouco triunfal! Presença sem presente... hum, tão sem-graça! Mesmo recebida com aparente naturalidade pela gentil pseudoconivência do despresenteado.

Não abro mão de um presente, nem avento a mais remota possibilidade de não o receber. E não só em datas especiais (a surpresa tem seu lugar). E nunca escondo a frustração quando ouço: “Depois, trago sua lembrancinha. Não tive tempo para comprá-la...”. Tempo? Um ano é pouco? Sim, porque aniversário é data fixa, ora! Imperdoável negligência desdobrada em prejuízo. Além do mais, se fossem levados a sério: “Prevenir é melhor que remediar” ou “Não deixe para amanhã o que se pode fazer hoje”, o potencial presenteado não sofreria tamanha decepção, nem o presenteador daria vexame.

Adoro o exercício de abrir caixas e pacotes: emocionante! O objeto ali, a olhar-me curioso: às vezes, malicioso, por outras, cúmplice; feliz e agradecido por eu libertá-lo da inércia dos papéis, fitas, laços, enfim, da enfadonha prisão. Ouço até tilintar de estrelas, como se em plena efusão do amor, ao despertar cada presente e senti-lo todo meu! Tal qual o eclodir de carícias, em pleno voo da poesia, toque sutil a buscar pouso na alma do verso recém-nascido. Uma sensação fantástica desembrulhá-lo, descobrir-lhe a essência e senti-lo em sua inteireza. O mesmo que liberar a criança, que se escondeu aqui dentro, por medo de crescer, para se fartar de chocolate (no meu caso, Sonho de Valsa). E qualquer um pode saborear esse instante. Basta cultivar o dom do encantamento e repudiar o ceticismo sisudo dos adultos amadurecidos à força, e que, em nome do adultamente correto, catalogam o presente como simples “lembrança material”, desprovida de importância. Não sabem eles que, ao dar a luz ao mais modesto presente, o gesto opera o milagre da materialização do afeto e do carinho, o que faz espocar a emoção, e exorciza a indiferença.

Sintam-se à vontade comigo, pois sei admirar e bem receber essa dupla de sucesso: Sua Majestade, o presente, e Sua Alteza, a presença! Belo casal! E atenção: o que a delicadeza uniu, não o separe a insensibilidade. Amém!

Momento poético:

Prefiro o silêncio das dores guardadas
e a solidão das saudades envelhecidas
ao rastro indolor do nada.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

POEMA

INTEIREZA DAS METADES

Lêda Selma

“... E que a minha loucura seja perdoada, porque metade de mim é amor, e a outra metade também.” – Oswaldo Montenegro

Tenho duas metades conflitantes:
uma é inquietaude,
a outra, solidão.

Uma é desassossego,
a outra, calmaria.

Tenho duas metades contrastantes:
a que sossega dores,
a que instila lembranças.

Uma conduz-me a delírios,
a outra, a saudades.

Tenho duas metades piedosas:
uma é ataúde,
a outra, liberdade.

Uma é espólio de medos,
a outra, covil de desejos.

Tenho duas metades intrigantes:
uma é reduto de gritos,
a outra, motim de prazeres.

Uma é ida sem caminho,
a outra, volta com atalho.

Tenho duas metades poderosas:
uma reza feito santa,
a outra, serpente, profana.

Uma é casta, quase insana,
a outra, fugaz e devassa.

Tenho duas metades tortas:
uma enlouquece e amedronta,
a outra persegue e abate.

Uma é fantasma,
a outra, impiedade.

Tenho duas metades implacáveis:
uma é morte,
a outra, tempo.

Uma satiriza verdades,
a outra martiriza sonhos.

Tenho duas metades sutis:
uma é rastos de lua,
a outra, restos de chuva.

Uma diz o que sinto,
a outra, o que minto.

Tenho duas metades perigosas:
uma recende amor,
a outra provoca a vida.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Diário da Manhã - 29/1/2012

O TROCO DO PÁROCO

Lêda Selma

Tudo pronto para a cerimônia. Padre aparamentado, igreja lotada, bordada e rebordada de flores, cores e brilhos e a nata social a exalar as mais variadas fragrâncias. De repente, em prantos, irrompe a noiva, brancamente vestida, e anuncia que o noivo sumiu, evaporou-se. Comoção geral. Vergonha municipal. Duas famílias tão tradicionais...

Dias depois, arrependido, o noivo faltoso marca nova data para o enlace, com garantia de presença. E a igrejinha decorada, novamente, com sedas, linhos e rendas para a esperada celebração.

Ao som de cornetas, a noiva. altiva, decidida e... vingativa. Sim, ainda sob forte efeito da rejeição pública sofrida, abandona o noivo fujão, em pleno altar. Nova vergonha para os anais da municipalidade. E a fúria incontrolável do padre, a proferir impropérios vários para todos os gostos e desgostos.

Não tardou tanto, o casal, pacificado, remarca o casamento, sob juras efusivas de comparecimento. De novo, pompas, caras e risos. A tais alturas, maledicentes.

Noiva e noivo reconciliados, amor e paixão renovados, desejos personificadas nos olhos, nas bocas, nos esconderijos mais secretos... Tudo pronto, enfim. Tudo? Bem, quase tudo. Falta alguém. Imprescindível à cerimônia religiosa: o padre. “Santo Deus, cadê o padre?!”, perguntam os noivos aparvalhados, os pais da noiva desolados e a assistência em transe.

O pai da noiva ordena: atrás do padre, já! E não foi difícil para a “comissão de busca e apreensão” encontrá-lo. Tampouco, sua famosa garrafa de cachaça. Com a “inseparável” em punho, e totalmente trolado, o padre trata logo de dar as boas-idas aos chegantes:

– O que é isso, invasão dos sem-cerimônia?! Porque não me lembro de ter convidado vocês para nada. O quê?! Casamento? Que casamento? Ora, tomem tento, se aviem: porventura, estou com cara de quem vai a algum?! Pois não vou. O ausente da vez? Eu, em carne, osso e batina, ouviram? Estão pensando o quê?! Marcam, desmarcam, vão e voltam, casam, não casam, recasam? Pois sim! Quem quiser se casar procure, de preferência, um idiota para a celebração, porque este aqui, ó, nem escoltado pelo diabo! Não arredo a negativa da boca por nada. E xô, xô, xô! Vão baixar noutro centro; o meu já está lotado e infestado de espíritos. De porco, naturalmente.

Ignorado o ataque colérico-alcoólico do padre, tentam rebocá-lo até a igreja para a oficiação do matrimônio. Em vão: recusa definitiva. Então, alguém sugere: quem sabe, os noivos conseguirão convencê-lo? Bem pensado!

O casal se desabala em correria. Ao vê-los (e, ainda por cima, tortos e duplicados), o padre pragueja. E, com as palavras e o corpo completamente alheios à lei do equilíbrio, encara-os com olhos chispantes, embora diminutos e sonolentos, busca o apoio de seu dedo indicador e libera a voz indignada:

– É de livre e espontânea vontade que estão aqui para contrair fuga?

– Núpcias, padre, núpcias, corrige, em cochicho, a mãe da noiva.

– Pois eu os declaro fujões até que a morte os separe – e esparge cachaça sobre os dois, como se os abençoasse –. Pronto. Agora, sumam de minha ira, e que o Senhor os acompanhe, pois precisarão muito da companhia e da proteção Dele, caso voltem aqui, ou em minha igreja, para me atazanar a paciência, meia vezinha que seja, entenderam?!

Não sei se o tal padre gosta de poesia. Alguns leitores, sim. E até me sugeriram que publicasse, aos domingos, meus poemas. Está inaugurado o espaço:.

POETA APOCALÍPTICA

O mundo, desarrumei:
desordenei horas,
desalinhei verdades
e desmontei tratados.
Marcas, apaguei todas:
desmanchei divisas,
depurei mentiras
e desmarquei saudades.

Enlouqueci o espaço:
estrelas, pus no chão.
No céu, terra e poeira.
Na lucidez dos mundos remexidos,
todos os sonhos, agora, misturados.
E me fiz mais que louca:
poeta apocalíptica!
Abri minhas cancelas
e encurralei a vida.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Diário da Manhã - 22/1/2012

UMAS E TANTAS NO CONSULTÓRIO MÉDICO

Lêda Selma

– Primeiro paciente da esturricante tarde – e que paciente! –, sujeito simplório e objetivo, logo me encarou sem acanhamento:

– Tá pra mais de meia hora que tô de prontidão esperando o senhor. A serviceira tá toda parada e eu aqui com a desimpaciência me cavucando a cabeça.

– Pois bem, vamos tentar recuperar o tempo perdido. Em que posso ajudá-lo?

- Dor nas costas e sono sumido, doutor, é meu incômodo.

Para segurança de todos, exames complementares. A clínica não indicava qualquer problema, mas nunca é demais um pouco de cautela, acautelou-se o médico.

Uma semana depois, e com a mesma pontualidade e impaciência, retornou o paciente ao consultório, ostentando os resultados:

– Pode me dar a sentença, doutor! Meu incômodo tem cura ou é caso perdido?

– O senhor está é com uma saúde porreta, parabéns!

– Como é que é, doutor? Não tenho nada, nadinha? Mas como? Perdi todo esse tempão aqui, já por duas vezes, gastei um dinheirão com os tais exames, desenterei minha paciência, peguei fila pra tirar guia, e o senhor, assim, sem mais nem menos, me dá a notícia assim, com a maior calma? Se avie, doutor, e me arrume uma doencinha que seja, desde que não me comprometa. Não pega nem bem eu ter ficado tanto tempo na sala de espera e depois chegar aqui e o senhor dizer que tá tudo bem, e me deixar sair sem uma receitinha, ora! Por favor, doutor, pra tudo há um jeitinho... E então?!

Certa vez, uma senhora terceirona na idade, carregando o peso dos quilos, batom vermelho a exibir uma boca com notáveis ausências dentárias, chega ao consultório e começa a responder às perguntas de praxe. De repente, olhar enigmático, embora decidido, disfarça uma recusa:
– Idade, doutor? Não domino muito bem tal assunto. E, pra complicar, ando se esquecendo de muita coisa. Problema de memória. Vamos pular isso e passar pruma pergunta mais fácil.

Sugestão aceita, outras perguntas rotineiras e mais um momento inesperado:

– Meu estado civil? Quer dizer, se sou mulher de alguém? – indaga a setentona, já com a voz adoçada de malícia, espichando para o canto do olho um olhar cheio de gulodice. – Ah! sou casada não! Sou é viúva pra mais de dez anos. Meu marido, o falecido, tibum! Bateu o prego na cerca. Mal súbito. Bem, voltando ao meu estado de viuvez... tô disponível, desimpedida e novinha em folha. Também, tanto tempo assim, sem servir ninguém, né doutor? Mas ainda se lembro – e como! – de muita coisa e, se precisar, tô com a lição em dia, é só tirar a prova. Queres...?

Coisas do arco da velha! E haja paciência para o doutor...

– É só um checape. Estou bem. Uma dorzinha de cabeça, de quando em vez, que costumo atribuir à má digestão, ao estômago, enxaqueca, mal funcionamento da vesícula ou do intestino.

– Bem, vamos aferir a pressão...

– Ih! meio desregulada, mais pra alta; culpa da taquicardia ou da falta de ar, bronquite asmática, sabe?

– Certo, vamos aferir a...

– Tenho sentido umas agulhadas no pé da barriga, pernas doloridas e inchadas; pode ser ovário, talvez rins, embora minha circulação não seja lá das melhores...

– Sei, vamos aferir...

– Umas tonturinhas, doutor, me incomodam um pouco; taxa de glicose um pouco elevada, quem sabe? Ah! calafrios, sudorese... bom, sintomas da menopausa, nada preocupante.

– Vamos...

– Ruim é meu apetite; e, às vezes, sinto certa fadiga, palpitação, mal estar generalizado, coisas do estresse, claro!

– Então...

– Me peça uns exames, doutor, questão de rotina, pois estou bem, a não ser o cansaço da vista e uma fisgadinha no ouvido vez ou outra. Mas tudo sob controle, isto é, quase tudo: a insônia atazana meu sono e a afta, minha língua, tanto que, doutor, quase não consigo falar...

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Diário da Manhã - 15/1/2012

CURIOSIDADES À PARTE...


Lêda Selma


Ah! não vou mesmo, de jeito maneira, nem que a coruja ria, o galo chie e o elefante mie! Tem graça Ir ao consultório de um dermatologista e deparar-me com aquela pele desfavorecida de viço, marcada por acne, manchas? E endocrinologista farturento, ou seja, com mais carne do que osso, mais banha que espaço? Nem pensar! Isso vale para o cardiologista. Para este, no máximo, manequim tamanho ‘M’! Agora, pneumologista arfante, com tosse, ixe! Pernas, pra que te quero?!

Não se trata de brincadeira, apenas, constatações como a do angiologista com veias enormes ramificadas pernas afora. Convenhamos, no mínimo, constrangedor! Mas de causar descrença, digno de desconfiança, o médico ler o laudo e, só depois, ver o RX, a tomografia, a ressonância... Feiíssimo, hem, doutor?! Que Deus me resguarde de suas vistas, amém! E psiquiatra com tipo e trejeitos de paciente? Bem, fazer o quê?! Afinal, onde encontrar um sem tais características? Se não houver outra saída, ó Cristo, por piedade, proteja minha cabeça!

Nenhuma implicância com a classe médica, não, não, nada disso (Deus me segure o ímpeto!). Tanto que mudarei o foco. Alguém se entregaria aos cuidados de um dentista, ou seja, odontólogo (mais chique e moderno, apregoam), cujos dentes escuros ou avariados lhe sorrissem um riso amarelo? Francamente! E quem contrataria os serviços de um advogado que, de cara, todo prosa e cheio de propriedade, alardeasse: sou adevogado! Confiança zero! E só mesmo o santo protetor dos ouvidos aviltados para salvá-los de um colapso auditivo fatal!

Pois é, que cada qual capriche em sua estampa de apresentação. As aparências, às vezes, enganam, porém, não raro, também revelam. E espantam.
Curioso: todo profissional carrega suas peculiaridades e ‘tiques’. Um exemplo, a mania do cardiologista: apalpar, com os dedos, o pulso de quem está ao seu lado. Proctologista, ginecologista... Hã?!

Dizem as línguas viperinas, aquelas de palmo e meio, que o cirurgião já cumprimenta o paciente com o bisturi na mão. As queixas do doente? Depois de combinada a cirurgia, recebem atenção, ora! Eu, hem?!

Mas há os exageros, ah! e quantos?! Minha mãe – hum, que saudade! – contou-me que, nos confins do sertão baiano, certa senhora, acometida de forte dor no joelho, marcou hora no consultório do ortopedista. Atendente mal-humorada, espera longa, calor a dilatar poros e impaciências, e a dor, ali, imperativa, a zanzar pelo joelho, a escorregar perna abaixo, enfim, um sofrimento de dar dó! Finalmente, a consulta. Sentado, o médico, sisudo, olhar acocorado sobre a ficha, inicia a anamnese, leigamente conhecida como perguntação; em seguida, levanta-se para examinar a mulher que, indisfarçadamente surpresa, percebe-o manco. Aí, pronto, tudo desanda! E foi tanto o desandamento que, entre muxoxos e lamúrias, ao sair, ela joga no primeiro lixo os pedidos de exames. Aturdida, sua filha aborda-a: “Que maluquice é essa, mãinha?!”. Maluquice?! Maluca eu seria se entregasse meu mal àquele médico sem competência, pois continuaria manquejante enquanto vida tivesse. Assunte: se ele, sequer, conseguiu curar sua própria enfermidade, vai curar a minha, vai? Oxente!”.

E não parou por aí. De outra feita, um homem chega ao centro cirúrgico, todo desconjuntado. De imediato, é chamado o cirurgião e, logo, toda a equipe apronta-se para a cirurgia. O acidentado olha para o doutor, na realidade, o tal ortopedista, e nota seu andar pender para um lado; uma cisma cutuca-lhe a mente. Súbito, vê outro médico, espécie de assessor do cirurgião, capengando e, então, desesperado, começa gritar: “Tirem-me daqui, senão, pelo andar da carruagem, ou melhor, dos doutores, o próximo manco serei eu. Socorro!”.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Diário da Manhã - 8/1/2012

DISTRAÇÃO QUE SE PREZE...


Lêda Selma


– E então, querida, aprovou o serviço do encanador?

– Ah! sim, aprovei! Um homem estranho, mas bom de serviço.

– Estranho, mas bom de serviço... como assim?

– Esquisito, entende? Diz e desdiz, aperta aqui, afrouxa ali, abre, fecha, torce, destorce e tudo quase ao mesmo tempo...

– Sei. Mas você disse que ele é bom de serviço...

– E é mesmo. E de preço também.

– É? E quanto ele cobrou?

– Um cafezinho. Pediu, mas nem tomou. Por causa da gastrite.

– Então, por que pediu?

– Foi o que perguntei, e ele me explicou: “força de expressão”, alguma coisa assim, disse-me.

– E você, o que fez?

– Repreendi tal indecisão e devolvi o café à garrafa, ora! Fazer mais o quê?

– Você não deu a ele uma gorjeta, querida?

– Espere aí... Ai meu Deus, não entendi a sutileza do homem. Depois que ele enjeitou o cafezinho, falou alguma coisa como gorjeta, trocados, assim, de passagem. E passou. Então, o de graça não era tão de graça nada...! Eu precisa ter-lhe feito uma graça... Que cabeça a minha!

– Bem, não há mais o que ser feito, paciência! Essa sua distração...

– Muito pior a daquela nossa antiga vizinha...

– Vizinha...?!

– Sim, a tal que o marido morreu enquanto ela viajava, ora! Vou reproduzir o que a outra vizinha, comadre da recém-viuvada, contou-me:

“A comadre, em transe, descabelou-se, aos gritos. A vida acabava de lhe enredar num tremendo espinhel... Havia saído de casa no início da semana, para um compromisso familiar, com previsão de volta para o domingo e, antes mesmo de abraçar todos os parentes, a notícia a alcançou, puxando-a para casa com a maior urgência. É
que seu marido, o compadre Zé Pio, sem dar um pio, pifou. De vez. Culpado? O coração, por causa da voltagem, há muito, oscilante. Retorno dramático, o da pobre. E, de repente, ela se lembrou da palavra viúva. Sim, porque sempre lhe pareceu ter cheiro de mofo e gosto de ferrugem! Aí, então, um Deus me socorra o desgosto!”.

– Você está me ouvindo, querido?

– Com muita atenção. Prossiga.

– Pois é, a vizinha, entre meios risos e palavras inteiras, prosseguiu com a narração:

“A chegada a casa, traumática e encharcada de lágrimas. A vista do quarto do
casal, dolorosa. Mas o jeito, preparar-se para as novas funções impostas pela viuvez. E rumar para o cemitério. Com amargura e acompanhada de lamúrias modelo “Ai, meu Deus!”, “O que fiz para merecer isso?”, “O que será de mim?”, “Como viverei sem meu marido?” , entrou na sala do velório e se precipitou, aos prantos, transtornada, com a dor também vestida de preto, sobre aquela inércia em forma de corpo. E, dele, a saudade já sentia falta, tanto que não se conteve”:

– Oh! Zé Pio, sou pura consumição, meu velho! – lamuriava a coitada.
“Comadre... – eu a sacudi. Em vão. – E ela”:

– Você não cria modos, hem, seu incorrigível!? Sempre aproveitando de
minha ausência para aprontar alguma, né?! Não podia, ao menos, esperar minha volta? Mal virei as costas, punhalada! Por que fez isso?!

“Comadre, levante-se, eu insistia”.

– Espere aí... O que aconteceu com você, marido? Está tão diferente,
esquisito...!

“E apalpava o rosto lívido do defunto, com mãos frias e desentendidas,
atarantadas e trôpegas. E eu a implorar-lhe: escute, comadre... Mas ela continuava”:

– Tem algo estranho em você, algo que não é seu... Claro! O bigode! É, onde, arranjou isso, homem de Deus?! Você nunca teve bigode! Algum disfarce?

“Sossegue e venha, comadre”...

– Sossegar, sossegar, como?! O Pio resolveu partir disfarçado. Minha
Nossa Senhora! Sinto que tem sirigaita na jogada. Cadê a infernenta, cadê, cadê?! Ah! se eu pego essa bisca...!?

“Vai dar confusão, comadre, levante-se”...

– Esse disfarce é, sim, pra enganar alguém! Mas quem? Confesse, ande,
homem, vamos, confesse! Sou eu a enganada? Se for, mato você sem piedade!

“Chega! Saia daí, comadre, já! – perdi a paciência”.

– Só depois que ele me disser onde arranjou esse bigode e por quê?!

“Comadre, comadre – sacolejei-a, com força –; acalme-se, e olhe o
vexame! Todos estão espantados... Venha, você errou de velório, criatura! Compadre Pio está é na sala ao lado. E sem bigode!”.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

POEMAS DE LÊDA SELMA

FÚRIA POÉTICA



O poema arregalou a boca
e mostrou-me terríveis mandíbulas,
enquanto seus dentes rilhantes
trituravam-me as palavras.

E os estilhaços dos versos
fugiram desarvorados,
em rastejos se lançaram,
e sumiram dor adentro.



DESAPONTAMENTO



Esbarrei nas palavras doidivanas
que vagavam, às cegas,
pelos labirintos do poema torto,
cavando riachos e túneis
em metáforas insaciadas.

Indultei as palavras
que saciaram loucuras
em tonéis de vinholetas
e nas barrentas águas,
que dançavam sobre a noite,
banharam-se entorpecidas.

Amansei as palavras doidinsanas
com a solidão da flauta
escondida displicente
nas artimanhas do vento.
E elas, ofegantes,
ocuparam o escuro
que guardei tanto e fundo
para minhas emergências.



RISCO



Fechei-me em teias
e nos fios de minhas sinas
estrangulei-me.

Mas sobrevivi ao rufar de asas.

Fecundei silêncios
e desatei a solidão
que me repartiu em nadas.

E sobrevivi ao cadáver de tantas dores.



NÃO TE DAREI POEMAS



Não te darei poemas presos em ataúdes
nem concebidos à luz de morte-cor.
Quero-os livres, mesmo doloridos,
quero-os vivos, ainda que insanos.

Não te darei poemas amortalhados
nem serei camélia em noites torturadas.
Quero fincar-te o poema na carne,
quero o ferrão do verso a devastar-te.

Quero poemas de desejos fartos
para te dar em noites libertinas.
Quero suores, rubores, amoras,
e em teu corpo, odores de meus rastros.
UM PATUSCO SACRISTÃO

Lêda Selma


Certo jovem, após realizar seu sonho de atuar como sacristão, passou uma chuva na igreja. Para estabelecer um pouco mais de intimidade com São Jorge, vistoriou o santo, mediu-lhe a espada e, nesse bole, rebole, assustou-se com um cofrinho que parecia esconder-se atrás da imagem.

– Espertinho, hem, Jorjão, escondendo a abastança, né?! E eu precisando tanto dessa gaita... Um empréstimo... e por que não? Sim, só um empréstimo. Juro pela alma de minha ex-quase-sogra, a nem um pouco saudosa dona Valentina, mãe da Alma (sempre estranhei este nome, cruzes! Até lhe dei um apelido: Coração), moça dotada de formosura e de virgindade, por quem tive um xodó de passagem. Mas que conversório é este, homem, vamos à facada, isto é, à espadada, não, não, ao empréstimo. O senhor me favorece com sua bondade e eu lhe retribuo com generosidade: uma espada nova – por conta dos juros – quando lhe devolver a mufunfa. Grato pelo consentimento, sim, quem cala... Sua bênção, sua licença e agradecido pelo empréstimo!

Tempos depois, numa noite de pele suada, o sacristão, tombado não só como patrimônio da cachaça, ouviu batidas na porta. E sentiu arrepios:

– Abra a porta, homem, sou eu, Alma, lembra? A Alma, da finada dona Valentina, já esqueceu?

“Danou-se: é ela, a injuriada alma da maldita, por quem jurei e, de propósito, nomeei minha avalista. Não abro e é nunca o ferrolho da porta – decidiu, de si para si, tropegando nas raquíticas palavras. Passado o susto, encorajou-se, e decidiu enfrentar o suposto fantasma:

– Não me lembro de nada. Vai-te embora, alma desgarrada! E que o diabo te leve. Meu negócio é com São Jorge, e não aceito procurador!

Passados alguns dias, um antigo vizinho, de nome Jorge, resolveu procurar Sacristiano, pois, semanas antes, haviam combinado matar um porco, daqueles engordados à meia:

– Ô de dentro, é o Jorge. Tô aqui com o facão em punho pra matar...

“Pronto, minha alma foi de vez pro brejo! Hum! que cheiro é esse... Será de alma esturricada?! Jurado de morte é o que tô. E o santo resolveu se abalar até aqui pra adiantar o serviço, recebendo, pessoalmente e com sangue, a maldita dívida” – deduziu, baixinho, enquanto se recompunha do tremendo susto. E tentou enrolar o lá de fora:

– Se amofine não, meu santo!. Olhe, volte pro sossego do seu altar que amanhã, nem que seja montado no rabo do primeiro sol, chego com o dinheiro. Agora, vá cuidar dos pedidos dos seus devotos, vá!

Preocupado com o sumiço do sacristão, mais para sacripanta, o vigário pediu a um amigo do procurado que descobrisse o sucedido.

– Sacristiano, ocê taí, sujeito? Aqui é o Jesus...

“Agora, sim, tô deveras perdido, e sem chance de salvação! O próprio Jesus, em pessoa e voz, me cobrando a dívida. Já sinto em definitivo minha alma churrascada no inferno! Mas, perdido por um...” – pensou com voz rateada. O jeito, ganhar tempo. Então, foi incisivo:

– Olá, Senhor Jesus, vossa bênção! Olhe, não vou abrir a porta porque a noite tá danada de feia, raivosa e traiçoeira, não convém lhe dar moleza, né? Vai que um raio mais atrevido se aproveita de meu descuido... O amigo é santo, tá protegido, mas esse pecador aqui, não. Mesmo assim, é melhor se recolher. Nada de confiar demais no próprio taco, pois os raios não respeitam ninguém, pergunte a seu Pai! Então, assunte, meu irmão, volte pros seus aposentos no paraíso, que, pelo andar das cobranças, não demora, a gente se topa por aquelas bandas. Já tô quase de posse da passagem... Agorinha mesmo, se bobeio, tinha embarcado, e o senhor já teria notícias minhas. Bastava eu ter deixado o santo – São Jorge, meu credor – entrar, com aquela enorme espada, que, a estas horas, já tava a caminho do além, todo espadaçado. Vou lhe propor um trato, Jesus: já que tô jurado de morte, pago a dívida diretamente pro senhor, sim, mas só quando chegar lá, combinado? Diga isso ao Jorjão.

Um 2012 de muitas renovações, muitos sonhos robustos e emoções em profusão, leitor.