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sexta-feira, 30 de julho de 2010

CRÔNICA

DE MILAGRE A SAFADEZA...

Lêda Selma

A cidadezinha, “Benza Deus!”, charmosa em sua simplicidade, como qualquer cidade interiorana, gabava-se de seu patrimônio: praça florida, matriz, coreto, moçoilas espreitando a chance de se desmoçoilarem, a rotina, às vezes, rebelando-se para sair à vida, e o riso farto das casas escancarado nas janelas abertas desajeitadamente.
Toda cidade tem seu padroeiro e seus assessores. “Benza Deus!” carecia de um. Afinal, a comunidade sempre se regozijou da fartura de santos que, dia e noite, assistia cada filho necessitado.
Não se sabe como, se eleito ou nomeado, São Benedito foi o escolhido, apesar de sua popularidade e prestígio questionados. Na linhagem das autoridades divinas, estava mais para senhoria que para excelência. De sua vida pregressa, sabia-se muito, e tudo o abonava para as atividades de padroeiro. O impasse? Sua impopularidade. E as línguas viperinas deduziram: ele era de cor (uma curiosidade simples: branco não é “de cor”? Nem amarelo, albino? “De cor”, só preto?! – ih! falei a palavra proibida...!), pois é, e além disso, diziam, o santo não era boa pinta, nem carismático, não possuía um currículo milagreiro grandioso, menos ainda, uma assessoria portentosa... muito mixuruca a escolha, indício de insucesso, vaticinavam.
Nada de preconceito, juravam as beatas. Porém, que a preferência de quase todos recaía sobre um santo municipalmente mais importante e de uma popularidade a toda prova, ah! isso era verdade!: Santo Antônio, o casamenteiro, o mago dos achados e perdidos (concorrente de São Longuinho?), além da bicorporeidade que os eclesiásticos sempre lhe atribuíram (estar em dois lugares simultaneamente). Santo de fama nacional e internacional, o preferido das solteironas recicláveis e das viúvas e descasadas saracoteantes e reaproveitáveis. Um santo quase eclético devido à sua polivalência; “pau pra toda obra”, asseguravam os entendidos em habilidades santísticas. Santo de casa, no caso, faria, sim, milagres.
Enfadados com tanta polêmica, transferiram (dizem, coisa do prefeito), aleatoriamente, e sob a alegação de interinidade, toda e qualquer responsabilidade religiosa municipal para Santo Antônio. São Benedito ficaria em descanso, a ver navios, não, não, nuvens.
Santo que se dá ao respeito não dorme em serviço. Padroeiro, então, precisa mostrar competência e fazer jus à bajulação dos devotos. E ai do santo que se fizer de vivaldino, para usufrutar de uma folguinha!
É, vida de santo é dureza: horário integral, com prorrogações e horas extras, acúmulo de funções, plantão permanente, enfim... E o detalhe: sem remuneração, gratificação de incentivo, adicional de insalubridade, salário família, férias, abonos, aposentadoria ou qualquer direito ou vantagem. Queria ser santo? Então, aguenta, ora!
Num desses dias bem agitados, o prefeito, sisudo e autoritário, colocou em polvorosa a prefeitura:
– Deixei as chaves do carro sobre minha mesa e as danadas sumiram.
A prefeitura ficou às avessas devido ao tal desaparecimento que, logo, espalhou-se pela cidade. Todos partiram, então, à caça implacável das chaves. Um corre-corre antológico. Um abrir e fechar de gavetas, armários, e outros esconderijos. De repente, alguém se lembrou do santo. O Antônio, claro! Horas antes, acionaram-no, às pressas: sumiço do manto do padroeiro. Pensaram até em aprontação do Santo em função de seu afastamento. Ah! detalhe: o manto possuía um bolsinho interno onde o padre guardava a coleta semanal. De procura em procura, o desaparecido, inopinada e estranhamente, apareceu, e o santo invocado, o Antônio, ganhou ainda mais notoriedade, enquanto Benedito reavia seu belo e útil manto.
Bem, voltemos às chaves! Procura aqui, acolá e, do nada, o sacristão chega esbaforido e com o sumido às mãos:
– Outro milagre, achei, achei as chaves do prefeito! Mas o santo, desta vez, cobrou pelo milagre. O problema é saber quem milagreou: Santo Antônio ou São Benedito?!
– Cobrou? Como? – indagou-lhe o prefeito.
– Ora essa, as chaves eu encontrei no bolso do manto de São Benedito. E do dinheiro, ó, nem notícia! Por acaso, a polícia vai prender os santos envolvidos, vai?
– Não, até porque seria pecado. Melhor, então, ficar o dito pelo desdito, pronto! – concluiu o prefeito...

quarta-feira, 28 de julho de 2010

CRÔNICAS

ANDINO, O DISTRAÍDO

Lêda Selma

Andino, caminhoneiro bonachão, feio mais que doença de pele, sempre acompanhado do amigo e protetor São Cristóvão, rodava por essas terras de ninguém, a esgoelar as músicas tocadas no rádio. Semanas e semanas na estrada, escoltado pela mesma solidão.
Numa dessas viagens, fugindo de seu antigo hábito de só pegar na estrada mulher aparelhada de qualidades visuais, deu carona a um senhor de meia idade, tipo bronco, de aparência serena, apesar de um pouco maltratada. De imediato, percebeu tratar-se de um homem econômico nas palavras e na alegria. Mas, pensando no percurso longo a ser vencido, resolveu tirar proveito da caridade cometida e, de pronto, liberou a língua para o pontapé inicial das palavras; e desamarrou uma conversinha insossa.
Assim, enquanto a viagem comia os quilômetros, os dois homens continuavam a triturar frases, bisbilhotados por uma tímida e pubescente lua. E, lá pelas tantas, já com o sono a lhes pisar os olhos, a cidade-destino do caroneiro apontou luminosa, como se preparada para festa. Com um encorpado aceno de adeus, o favorecido agradeceu a cortesia de Andino e tomou seu rumo.
Alguns metros, à frente, o caminhoneiro passou a mão pelo bolso da calça e sentiu a ausência da carteira. Às carreiras, saiu atrás do desconhecido. Alcançado, o homem assustou-se com a puxada, de supetão, do companheiro de percurso.
– Tu é um sujeito lascado, ô cabra, se não me devolver, sem piscanejar, a carteira que tu me roubou. Vou te dar uma pisa tão grande, mesmo depois de devolvida a carteira, que nunca mais tu vai esquecer a lição – berrou Andino, com a mão esquerda acintosamente estendida e a outra, ameaçadora.
– O que é isso, amigo, tá me estranhando? Não entendo sua ira, nem sei que história é essa de carteira roubada. Mesmo chateado, lhe permito me revistar pra resolver sua dúvida.
– Dúvida, infeliz? Certeza, seu rato de estrada! – esbravejou o caminhoneiro, enquanto violava os bolsos do acusado, à procura da desaparecida que, de repente, apareceu.
– Malandro dos infernos, então, é assim que tu me agradece? Rouba minha carteira e ainda te faz de vítima, descarado? Só não te entrego pra polícia porque não quero mais atraso na viagem, senão, tu ia ver com quantos ferros se faz uma grade de cadeia.
– Pelo amor de Deus, moço, ganhei essa carteira de um filho, no último Natal. Vamos procurar a do amigo, deve estar na boleia do caminhão, caída embaixo do banco...
– Além de ladrão, cínico. Vai-te embora, cabra! – esbravejou Andino, dando as costas ao estupefato suspeito.
Humilhado, o caroneiro afastou-se, prometendo, com a altivez da consciência em paz, que as coisas não ficariam assim. Iria ao delegado.
A sirene policial, logo, alcançou Andino.
– Boa-noite, sente-se, por favor! – disse o delegado.
– Pelo visto, pra mim, nem tão boa – retrucou Andino.
– O senhor foi acusado de roubar uma carteira.
– Fui o quê?! Tenha paciência, doutor! Eu, sim, tive a carteira roubada, mas já recuperei, por isso não dei queixa. São Cristóvão é testemunha (falando no senhor, que cochilão, hem?! Plantonista que se preze não dorme em serviço!) – pensou baixinho para não desmoralizar o amigo santo.
– Quem é Honestino Severo? – indagou o delegado, ao ler os documentos retirados da tal carteira.
– Sou eu, delegado!
– Honestino...? – desesperou-se o caminhoneiro.
– O que tem a dizer, senhor...
– Andino dos Santos. A dizer? Bem... estou desentendido, doutor.
– E o senhor Honestino?
– Recuperei a honra e a carteira. Retiro a queixa. Apesar de tudo, devo um favor a esse homem.
De volta ao lar, dias depois, ainda confuso, aporrinhado, com a saudade dos filhos e da mulher a lhe judiar o coração, Andino foi recebido com festa pela família também saudosa. E, após um xodozinho da patroa, recebeu um carinhoso pito:
– Homem de Deus, como é que tu viaja e não leva a carteira? Achei a esquecida bem aqui, olhe, em cima do banco. Eta homem danado de distraído este meu pau de arara, oxe!


O BEIJA-FLOR E OS BOMBEIROS


Lêda Selma

Já disse e redisse que, se não fosse gente, gostaria de ser estrela ou beija-flor. E também é sabido que sou fascinada por esse pássaro minúsculo, de modos elegantes e irrequietos, sugador de néctar e beijador de flores. Ah! fico enfeitiçada com o bater musical de asas do equilibrista da natureza! É tanto o meu fascínio que sempre acho um jeito de entremeá-lo em meus poemas: “Poesia é um colibri lindourado/com hálito de primavera”. Ou ainda: “Nos vincos de minha boca,/beija-flor colhe palavras/e poliniza saudades(...)”. Em um poema dramático, disse ao Júnior: “Sob as sombras da tarde louca,/senti teu perfume, filho,/naquele beijo tão branco./E só então compreendi:/beija-flor é alminha de anjo”.

Tudo aconteceu numa segunda- feira. Apesar da chuva, fui ao salão de beleza dar um jeito nos cabelos. Mal cheguei, uma das profissionais, disse-me: “Aquele beija-flor, há horas, entrou aqui, voou para o alto e não consegue descer para ir embora”. Olhei para a direção por ela indicada (credo, que pé direito altíssimo o da tal sala!?) e vi o pobrezinho voando tortamente, de um lado para o outro, perdido e estressado. A transparência do vidro aturdia-o e, como se achasse possível transpô-lo, precipitava-se repetidamente sobre ele, desesperado.

De pronto, sugeri: uma vasilha com água açucarada, sobre o balcão, perto da porta, para induzi-lo a achar a saída. Aflitas, ficamos na torcida, à espera da perspicácia olfativa do miudinho. O açúcar não o fez descer. Nova estratégia: colher umas flores na árvore em frente e avizinhá-las da água açucarada. Mais ansiedade e... nada! Continuava confuso, batendo no vidro, voando zonzamente, cansaço à mostra, risco de se machucar... E eu, com os cabelos lambuzados de tintura, legítimo arremedo de mim, maquinava uma ajuda mais eficiente. E meu pensamento insistia: “Beija-flor é alminha de anjo”. Ai, meu Deus, e se for de um anjinho distraído, que se desgarrou dos colegas por descuido? Uma ação mais decisiva, com jeito de sólida, urgia.

Os bombeiros! – decidi, já com o 193 digitado no celular. Um cabo da Corporação atendeu-me. Contei-lhe o drama do beija-flor e fui aconselhada a aguardar mais um pouco, na esperança de que a água açucarada e as flores ainda cumprissem a função por nós desejada. Uma hora depois, liguei novamente. Solícito, transferiu a ligação para sua superiora. Condoída com a delicada situação do miudinho, prometeu-me falar com um superior mais graduado e, se autorizada, destacaria um carro e uma equipe para o resgate do beija-flor. Emocionadas, aguardamos. E o miudinho ali, de lá pra cá, colidindo com a vidraça, desalentado e exaurido, afinal, há horas, não se alimentava e suas forças, por certo, já lhe minavam a resistência.

De repente... Viva! O beija-flor desceu, sugou a flor, tomou o rumo da porta e, qual um foguete, desapareceu; enquanto isso, outra profissional anunciava: “Os bombeiros chegaram!”. Constrangida, só me ocorreu perguntar aos dois sargentos a um cabo e ao motorista: por acaso, não toparam com o beija-flor aí fora? Ele acabou de passar por vocês!

É claro que lhes dei as explicações devidas. Como poderia, convenhamos, prever que o beija-flor me faria tamanha ursada?Uma aprontação e tanto, sem dúvida. Sim, porque durante horas ele se debateu, sofreu, não achou o caminho, e, assim, sem mais nem menos, justo quando seus salvadores chegaram, o fulaninho deixa-me no maior vexame?! Francamente!

Se toda instituição brasileira pudesse orgulhar-se de sua corporação e dos serviços prestados à comunidade, como o Corpo de Bombeiros, o Brasil seria bem mais sério, digno e grandioso. Afinal, é comovente o desprendimento desses abnegados guardiões da vida. São seres abençoados, a quem Deus iluminou ao lhes confiar o sagrado ofício da solidariedade e do verdadeiro amor ao próximo, mesmo que o próximo seja apenas um beija-flor.

domingo, 25 de julho de 2010

POEMAS DE LÊDA SELMA

DE DOR E DE PERDA....

A meu filho, Júnior

Dói muito, filho,
a certeza do dia
sempre vazio de você...

A noite a se imiscuir
em meus sonhos sem viço
e tão carentes dos seus...

Dói muito, meu menino,
esta tristeza envelhecida
que agoniza e não morre...

Teu riso no porta-retratos,
a transpor o sol
para se aquietar nas noites.

Dói, e como dói, meu anjo,
este tênue condão de vida.





SAUDADE


Saudade é candeia
baça e sem azeite,
ferida de silêncio
em peito espoliado,
momentos idos
na solidão dos rastos,
rebelião de dor amotinada.

Saudade é guizo
de ventos viajores,
sonho flagelado,
sumiço de estrelas,
noite a esvaecer
na sombra do abismo
que seviciou a lua
e esfolou a madrugada.





RUÍNAS



Há um poço de fundura íngreme,
um abismo em teu olhar.
Um vazio metálico, punhais
e um medo mais profundo ainda.


Rios escondem luares
e ruínas de noites, em teu olhar;
e meu olhar penetra a solidão
que neles busca sossego.

Um jeito triste de névoa
e turbulências de dores
desamparam teu olhar,
que não sobrevive ao meu.

Há um poço de fundura íngreme,
pedras de corte,
farpas e chispas, em teu olhar.
E um abismo entre nós.



VOLTA


Esta clareira aqui, sob o peito,
tem vazios, valas, lonjuras
e fósseis de amores tardios.

Nem mais ouço os alaridos
de minha carne chamuscada
sobre as peliças de outrora.

Mas sinto o rodopio do vento
grimpar ladeiras e flancos,
com a saudade nos ombros.



VINHO-SAUDADE


Gosto de vê-la sempre à deriva...
Vergão, cilada, estrepe, corredeira...

Gosto de seus trajes de ciprestes
e de suas mãos de vento e açucenas.

Se tumba, guarda sonhos putrefeitos;
se acervo, esconde espólio de amores.
Saudade é vinho não envelhecido,
mas entornado em noites de abrolhos.




TRAVO



Este amargo no meu verso
é dor deixada ao relento,
é mofo de amor arredio,
resto de coisa estragada.
Este cheiro no meu verso
é hálito de beijo dormido,
é suor de desejo magro,
sobra de amor confinado.
Este frio no meu verso
é saudade amanhecida,
é silêncio a mascar vazios,
restolho de amor puído.
Este travo no meu verso
é mofo, é hálito, é frio,
revés, avessos, saudades,
despojos de amor sozinho.
E ELE, O ANFITRIADO?!

Lêda Selma

– Não acredito! Você por aqui? Quanto tempo! Que prazer!
– Prazer sem medidas. E por falar nelas, as medidas, você está muito bem. A lei da gravidade, no seu caso, esqueceu de ir à lida.
– Será? Pois é, quem é vivo – não só vivo, convenhamos – sempre aparece. Você também está ótima.
– E esse cabelo sexy? Dizem que as ruivas... bem, dizem. E sua pele, então? Frescor de naftali..., arre, nectarina!
– Como de costume, sempre confusa e aprontando alguma. E de marido, em que número está? Da última vez...
– O atual é o quarto, porém, um de meus olhos acaba de divisar um possível quinto. Espere, aquela ali não é a... Hum! veja que pretinho básico ela está usando...!
– É a própria. Pretinho básico...?! Ela está de vermelho, uai!
– Acorda, mulher! O pretinho básico da vez é outro...
– Chiiii, você e suas sutilezas! Escute, não era ela quem dizia que, a cada troca de carro, devia-se também trocar o marido? Segundo a devassa, o prazo de utilidade de ambos é o mesmo: no máximo, dois anos. Que descarada!
– Sei não, acho que a fulana está toda plastificada, siliconizada e lipoaspirada, observe. Reforma geral e irrestrita. Ih! olhe lá, do outro lado, aquela talzinha que afanou o marido da própria empregada, recorda-se? Um escândalo e tanto à época.
– Se me recordo... O escândalo correu de boca em boca e de ouvido em ouvido. E a empregada ficou mesmo no prejuízo.
– E você botou reparo na benevolência da fenda e do decote da afanadora? E os olhos masculinos tateiam os vãos e desvãos, reentrâncias e protuberâncias da farturenta, notou?
– É, e dela, a lei da gravidade também se apiedou um pouco. Foi à lida sem muita garra, apenas com aquela disposição de funcionário público em antevéspera de feriado ou de político após a eleição. Sortuda!
– Ih! falando nele, ele.
– Ele? Ele quem?!
– Um político autêntico, ora: não faz nada pra ninguém, mas é uma simpatia! Embora já pirocado, continua charmoso.
– E muito presente: na alegria e na tristeza. Já no gabinete, nem tanto. Porém, sumido, sumido, ele não fica. Se não frequenta a Assembleia Legislativa, pelo menos a outra, a de Deus, vez alguma, sim. Essas excelências...!
– Parece que ele não nos viu. Foi direto para a roda dos homens.
– E bote tento na roda: uma alegria só, que gargalhadas gostosas! Por certo, piadas e mais piadas.
– Gosto muito dessas ocasiões; são ótimas para encontros e reencontros, bochichos e cochichos, irradiação da vida alheia, enfim. A gente arranca até defunto da cova...
– Cristo Santo, bem lembrado, e, felizmente, a tempo! Com licença, amiga, preciso falar com a anfitriã.
– Anfitriã, a protagonista das maiores façanhas nos tempos da faculdade? A mulher era de morte!
– Pelo visto, ela não, o marido. A propósito, vou abraçá-la e aproveitar para dar um adeusinho ao anfitriado.
– Espere. Tcham, tcham, tcham, tcham! Quem chegou? A maior novidadeira do pedaço e seu inseparável meio-risinho.
– E com que elegância a depravada aproxima-se da anfitriã, de cujo marido foi usuária assídua. Cínica!
– É, os cumprimentos embeijocados são a alma da conveniência...
– Alma? Boa lembrança! Cruzes, me entreti tanto neste converseiro que me esqueci, de novo, de cumprimentar a anfitriã e reverenciar o anfitriado.
– E estamos aqui justo por causa dele, o motivo deste evento. Pobrezinho, é o menos lembrado... E vá logo falar com nossa amiga, mas cuidado com as palavras, hem!? (Meu Deus, que essa tresloucada não troque Chico por cisco nem morte por sorte).
– Olá, amiga, meus cumprimentos! Uma surpresa e tanto, dormir casada e acordar viúva, hem!? Deus sabe o que faz: antes ele que você. Parabéns, querida, sua viuvez está um luxo nesse tomara-que-caia! E o velório, então... Ah! um charme!

quinta-feira, 22 de julho de 2010

APÓS O SUSTO, SUA MAJESTADE, O ARAGUAIA!

LÊDA SELMA

Como sempre, julho, com sabor de Araguaia, exala cheiro de saudades, incita fantasias de pescador, reverencia belezas de todos os sons e tons, como o alaranjar-se do sol, em transe, a se dissolver, lá no longe, aos pés do rio, para depois afogar-se em suas águas, e morrer devagarinho. Um espetáculo de dor e de êxtase, prelúdio de esperança, pela certeza do renascer, na manhã seguinte. Acho, a essa conjunção de vida e morte funde-se também o enigma dos contrastes. Eu, hem, filosofando?! Melhor poetizar. E fotografar (confiram meu novo “talento”, a fotografia – Ih! agora, pulei o Araguaia de cócoras! –) no meu blog que, modéstia às favas, está um charme!
Desta vez, capturei, também fotograficamente, de próprio punho, toda aquela beleza plácida do imponente monumento goiano, o Araguaia de pele morena,/de banzeiros e ressacas,/de corpo suado, lascivo,/coleante feito vento,/a beber solidões e sonhos/na calmaria das noites.
Mais um julho, mais um início de temporada, mais momentos de enleios naqueles cantos, encantos e recantos de uma natureza exuberante e cálida, molhada por águas dançarinas, e embalada pela música saída de suas próprias entranhas. Rio de cristais borbulhantes/em louras manhãs ridentes,/rio espiando, matreiro,/ao longe, n’altiva fraga,/a lua, toda faceira,/de namoro com a passarada/em tardes alcoviteiras.
A tralha, impaciente, e pronta já de antevéspera, como de hábito, queria porque queria rumar-se para a estrada, reavivar a alegria de ver a distância encurtar-se, ao engolir a serpente de piche, esparramada feito um rio de águas negras sobre o caminho dos sonhos. Leda sonhadora, a pobre iludida! Refiro-me à tralha, naturalmente.
Da tal estrada asfaltada, apenas, a rima, lembranças e saudades. A coitada finou-se, e deixou expostas escomunais feridas. Santo Deus, que buraqueira, um horror! Até tentaram, porcamente, mas não deu certo, encher os buracos com sei lá o quê, para a AGETOP espalhar na mídia que está tudo bem. O remendo ficou pior que o estrago. E nossos bolsos, claro!, pagaram o pato, ou melhor, o impacto (e que impacto!). Nós, os ocupantes da D 20 vermelha, cabine dupla, que o digamos.
A tragédia só não se realizou porque Deus, com a misericórdia atenta, acudiu-nos quando uma roda da camioneta, após vários baques nas crateras asfálticas, soltou-se, e, com o pneu, voou mais de trinta metros. É, bombrilescamente falando, marido tem mesmo mil e uma utilidades (pelo menos, o meu!): uma delas, a perícia para segurar a camioneta e suas rabanadas, ufa! Escapamos de um trágico capotamento, até porque o fluxo de veículos era enorme; um desses veículos, o carro de reportagem da TV Serra Dourada, que passava pelo local com destino a Aruanã. Assustados, o repórter John William e o cinegrafista Marcos dos Reis quiseram saber os detalhes do sucedido. Bem, acabei na tevê (nos jornais do Meio Dia e Serra Dourada), com os nervos à flor da perplexidade e da indignação – um Deus segure minha emoção e minha ira! –, ao lado da camioneta com a traseira arriada, e do caminhão-guincho tentando caroneá-la. Malditos buracos! Malditos irresponsáveis, responsáveis pelas estradas goianas, que tanto desrespeito despejam contra vidas e cidadãos! E o pior: reclamar a quem?!
Após horas e horas aqui e acolá, chegamos, à noite, ao Rancho Apolo, lá no Landi, que nos acolheu com o afago costumeiro. Enfim, uma semana de comilança, bebelança, prosança e violão dos bons, apesar de certas vozes desafinadas. Mas que importância isso tem, se tudo vale a pena se a alegria não é pequena? (Perdão, Fernando Pessoa!).
Julho é tempo de saudade, repito. E uma delas, a maior de todas: a do meu filhote, Júnior, que se estrelizou. Não posso comemorar seu aniversário, meu anjo, mas posso celebrar as lembranças que, vívificadas, ficarão ainda mais acesas dia 27, como fagulhas de amor. Parabéns, meu menino, e que Deus o abençoe, ah! e participe de sua festa!

quarta-feira, 21 de julho de 2010



Foto: Lêda Selma

RIO DE PELE MORENA

Lêda Selma

Araguaia de pele morena,
de banzeiros e ressacas,
de corpo suado, lascivo,
serpejante feito vento,
a beber solidões e sonhos
na calmaria das noites.

Rio de cristais borbulhantes
em louras manhãs ridentes,
rio espiando, matreiro,
ao longe, n’altiva fraga,
a lua, toda charmosa,
de namoro com a passarada
em tardes alcoviteiras.

Araguaia de aruanãs,
de saudades ao relento,
do pescar ágil das garças,
das gaivotas em alvoroço,
das madrugadas sozinhas,
deitadas, ao léu, n’areia,
sob algazarra de estrelas.

Rio triste, torturado,
vermelha ferida que sangra
nas entranhas da natureza,
nos silêncios em estiagem,
nas tartarugas em fuga,
na mata violentada,
na agonia dos peixes.

Araguaia com suas lendas
e seus botos cheios de encantos,
dos mandubés, matrinxãs,
tucunarés e pintados,
do céu a se olhar nas águas,
enquanto aos pés do barranco,
se banham de sol e vida
ninhadas de tracajás.

Rio de silêncios migrantes,
de mutuns cantarolando,
da inhuma e do colhereiro
no mergulho pela vida,
das capivaras e pacas,
das ramagens dos amores,
Araguaia abençoado,
alma dos Carajás.

terça-feira, 20 de julho de 2010

MÃE

Lêda Selma

Nas pegadas de sol
escondidas nas teias
onde doem silêncios,
fecundam lembranças
e sorriem sonhos
de tantas marias:
Maria das graças,
Maria das dores,
marias tão santas,
marias sem mantos,
da vida, mundanas,
do perdão, dos amores.

Mãe das saudades,
das sinas, caminhos,
onde brincam estrelas,
sossegam temores,
dormem solidões,
despertam manhãs.
BRASILEIRO: CARICATURISTA NATO

Lêda Selma


Caricaturista tope de linha, de primeira grandeza, sem dúvida. Por mais que as coisas desandem ou transviem, sua imaginação está ali, acocorada, à espreita, maquinando jogos de sentidos e de palavras, traçando burlescos esboços sociais, religiosos e políticos, satirizando situações, pessoas, autoridades e suas circunstâncias. Enfim, o brasileiro é notável no ofício de caricaturar. Vez ou outra (ou em sempre?!) também meu verbo comete algumas irreverências com panca de caricatas. Compreensível: sou brasileira e, ainda por cima, baiana goianizada. Vixe! Uai, queriam então o quê?!

Já falei, refalei, repeti sobre o jeito eufêmico (e, quase sempre, hipócrita) com que alcunharam certos “tabus” do nosso cotidiano, alguns até amparados por lei, sim senhor! Preto, agora, é referência de cor só para roupas, sapatos, objetos. Para a pele (humana, bem entendido) a ordem é sofisticar, usar formas antidiscriminatórias ou oficialmente corretas, asseguram: “afro” (brasileiro e outros tantos afro-descendentes). No paralelo, ou seja, extra-oficialmente, tolera-se: “torrado”, “marrom-bombom”, “achocolatado”, “escurinho”, “moreno-chegado”, “negritado”... Isso, dizem, não ofende nem discrimina, apenas, sugere a cor sem pronunciar a fatídica palavra, a tal proibida. No mesmo pacote, estão pessoas com necessidades especiais (os, outrora, deficientes físicos); o menor foi apreendido (recolhido a outro tipo de prisão) e por aí vai... Os adeptos destes escapismos não percebem que, na realidade, a hipocrisia está aí caricaturada e, muitas vezes, não só discriminam, mas, sobretudo, ridicularizam, pois soam irônicas, debochativas.

Será que, por isso, já se tornou nem tão incomum a desonestidade usar terno e gravata, toga, apito, mandato, colarinho branco...?! Ih! ela também adotou vários e risíveis codinomes: corrupção, propina, convocação extra, conchavos, alinhavar acordos... Mas nem tudo mudou: excelência continua excelência; meritíssimo, meritíssimo; senhoria, senhoria; meliante, meliante. Roubo e desvio é que ainda tentam um acordo...

domingo, 18 de julho de 2010

SEGREDOS DO ARAGUAIA...



Lêda Selma




Julho é tempo de Araguaia. Neste mês, deixo-me seduzir pelos encantos do rio e reverencio toda a sua majestade durante uma semana, cheia de xodó com o namorado de tantos e tantos goianos.
Dos mosquitos, não gosto. Aliás, detesto-os. Tanto, que me preparo para combatê-los com um arsenal quase bélico: roupa à prova de “porvinha” e de muriçoca; repelente especialmente manipulado para bani-los de meu perímetro humano; luvas, telinha para a cabeça, meias de grosso calibre, enfim. “Um astronauta”, “o monstro das águas”, “espanta mosquito”, “fantasma do Araguaia”, “ET”... não me poupam elogios, os companheiros (ah! sempre tão carinhosos...!).
Assim, imune às picadas dos malditos, desato a fantasia, dou passagem à emoção e mergulho no fascínio misterioso e plácido do Araguaia (mergulho no sentido conotativo, pois, sequer, coloco os pés em suas águas: sou “fluviófoba”; perdoem-me o arremedo de neologismo, mas foi o jeito...). E a bordo do barco Xambioá, motor 25, vou tecendo intimidades com o rio, trocando cochichos secretos, mornos carinhos e silêncios espreitados, apenas, pelas serestas dos pássaros ou pela altivez das garças, estátuas brancas fincadas às margens daquela imensidão azulcristalina.
É disso que gosto: do passeio de barco. De deixar meus olhos tocarem toda a beleza arregalada naquelas águas andarilhas. De deixar a imaginação rastrear o tênue vai...e...vem dos peixes. De me encantar com a acrobacia dos botos. Com o zurzir do vento. E, com o dia já em arribada, ver o sol, vermelhejante, escorregar pelo barranco e debruçar-se sobre o rio para o banho de fim de tarde. Ah! um espetáculo que concentra magia, solidão e deslumbramento!
Pescadora, sou também. Pesco tudo: de garrancho a candiru. E até arraia. Enorme. Fui apresentada a ela, assim, de supetão, por um anzol competente, quando a vara, em total tremedeira, parecia intimidar-se com tamanha presença. Estranha flor dançarina de veneno exposto no ostensivo caule, a pescada. Lutadora, não se rendeu. Bravia, impôs-me a excitação e o cansaço como preço pela conquista. Dizem, de carne saborosíssima e saudável. De minha parte, não digo nada, pois todo tradicionalista que se preze não sai da rotina gastronômica tão facilmente. Além do mais, nem gosto tanto assim de peixes nem de seus similares.
Mas não só de arraia, garranchos e azulões vive esta pescadora. Pesquei quatro mandubés e um barbado. Um deles – acho que o mandubé –, mesmo bem fisgado, lutou o quanto pôde e, quase abatido, já na beirada do barco (isso é que foi o pior!), fugiu, debochadamente, com isca, dignidade, tino de sobrevivência e tudo o mais. Requebrando de forma acintosa, abanou-me o rabo como testemunho de minha derrota. Felicidade de peixe, decepção de pescadora. Ainda não me conformei com tamanha desfeita.
É assim que gosto de curtir o Araguaia: navegando por sua lassidão. Alcovitando a lua que despenca sobre o dorso do rio e, sorrateira, quase de joelhos, curva-se para beber uns goles de água. Jogando sonhos, feito sementes de estrelas, por entre espumas e estrias do majestoso rio. Vendo o barco desenhar, sobre o silêncio das águas, cardumes imaginários. Sentindo a saudade colear no rastro de lembranças tantas. É assim, também, que gosto de sentir o toque do Araguaia: do alto do Rancho Apolo (onde o deus-Sol extravasa sua soberania), deitada na rede, lambuzar-me de segredos da noite, do silêncio e do rio...
EU, HEM?!

Lêda Selma

No mínimo, estranho o jeito como as pessoas portadoras de qualquer tipo de deficiência (hoje, cognominadas “pessoas especiais” – mais um eufemismo...!? – ) são tratadas. Não importa o jeito, mas há sempre um ranço de discriminação à mostra, quer por excesso de comiseração, quer pela carência de respeito. O ponto de equilíbrio, ih! cada vez mais distante! É cada fiasco! E os constrangimentos? Até Deus duvida.
Outro dia, um senhor, integrado aleatoriamente à emergente classe de “pessoas especiais”, acompanhou um amigo à casa de uma família enlutada, para a tradicional visita de pêsames. Ao amigo, os visitados dirigiram-se de forma contida, à altura do momento. Entretanto, ao notarem seu acompanhante, o “bom-dia!” retumbou em decibéis à prova dos mais resistentes tímpanos, capazes de quebrar até vidraças. Desentendidos, entraram. Mal o fizeram, a viúva mandou a filha buscar umas almofadas, “aquelas mais macias”, e as colocou na poltrona maior da sala e, no mesmo tom estridente, conclamou o visitante “especial” a acomodar-se: “Aqui é mais claro e arejado”. Pouco depois, entregou-lhe, à revelia de qualquer solicitação, um gorducho copo com água e, logo após, com ar condoído e solidário, postou um ventilador perto do homem, abriu todas as janelas, libertou-as das cortinas e persianas, acendeu as luzes e, com os decibéis ainda mais à toda, ofereceu ao estupefato agraciado um farto sanduíche, uma fatia de bolo e uma coca-cola bem geladinha. E cheia de propriedade, fitou-o preocupada:
– O senhor está bem? Coma! Ah! a coca é zero. É melhor para o seu caso...
– Não, minha senhora, grato. Estou ainda saturado com o almoço. “Para o meu caso...?”, pensou intrigado.
– É, mas o senhor não pode brincar com a saúde e ainda mais com a alimentação...
– Sim, não me descuidarei de ambas. “Por que será?”, indagou-se.
– Mais um copinho com água, então? – insistiu a viúva, no mesmo tom gritante.
– Não, senhora, obrigado, estou saciado.
– Ah! espere um pouquinho, vou buscar um puf para o senhor espichar as pernas...
– Não, por favor, estou bem! Prefiro assim mesmo...
– Como, prefere assim mesmo? O senhor precisa poupar suas pernas, ora!
– Preciso? “Ai meu Deus, o que está acontecendo?” – perguntou-se injuriado.
– Claro! Não é bom ficar com as próprias penduradas. Ainda mais no seu caso...
– Meu caso? Mas que caso? Não estou entendendo... Olhe, dona, não sou surdo, nem retardado, nem doente, nem coitadinho. Ao contrário: sou forte, sadio, feliz e, por obra do destino, cego de nascença. Portanto, sossegue, por favor, sossegue! Inclusive o tom. Ufa!!!
Também ouvi de uma amiga paraplégica que, não raras veze, foi confundida com pedinte de rua e, em algumas circunstâncias, até moedinhas lhe ofereceram. A cadeira de rodas (“minhas pernas de aço”, como diz), a seu ver, transporta, além do corpo, também o estigma, pois nem o fato de pertencer à classe média alta, de ser bem apessoada e de deixar a vaidade sempre exposta em roupas bonitas, acessórios vistosos e maquilagem bem feita deixa-a invulnerável a certas reações sociais. E até uma cena estapafúrdia protagonizou: numa tarde de céu já desbotado e de vento irreverente, passeava pela Feira da Lua quando, a súbitas, uma senhora de mente e cabelos grisalhos parou à sua frente, aboletou a mão em seu ombro e ofertou-lhe “uma ajudinha”, sob o argumento de que “é muito feio ficar com esse olhão comprido e pidão estendido sobre as coisas alheias”. Assustada, a moça das “pernas de aço” recusou a caridade e, em resposta, recebeu um tapa-corretivo e um pito.“Além de tudo, ainda é orgulhosa? Vai ficar com esse dinheirinho sim, que é pra deixar de ser pobre de espírito e pobre soberba. Onde já se viu...?!”.

terça-feira, 6 de julho de 2010

FRAGMENTOS POÉTICOS

Lêda Selma

Ah! do amor, tudo quero...
Um homem cheirando a estrelas,
que imortalize o efêmero,


É disso que gosto:
de pescar no céu do rio
e encher o barco de estrelas...


Mesmo os corações blindados,
. as palavras ferem como baionetas.


Esta clareira aqui, sob o peito,
tem vazios, valas, lonjuras
e fósseis de amores tardios.
APOLOGIA AO PRESENTE*

Lêda Selma

Como é gostoso o ato de presentear! E que delícia o de receber! Além de alegrar, de encantar, de emocionar... cria um elo mágico entre presenteador e presenteado. Por quê? Ora, pelo motivo mais simples e terno que reveste aquele sentimento que até faz cócegas de sabermos que alguém, por alguns momentos, pensou em nós, dedicou-nos parte de seu tempo, buscou fazer-nos um mimo, colocando carinho e sensibilidade naquele pequeno (e tão enorme!) gesto: deixar para o coração a escolha do presente.
Algo de primeiríssima necessidade, o presente. Pessoalmente, considero-o mais que imprescindível. Aliás, nem posso imaginar um aniversário ou Natal, um Dia das Mães ou dos namorados... órfãos de presentes. E não me venham com o discurso (nem um pouco romântico e tão carregado de falsa razão) do “apelo comercial”. E o apelo emocional e afetivo, não contam, hem?! É certo que o comércio fatura. Mas o presenteado também.
Não acredito, pois, na veracidade do tal “Não precisava se preocupar com o presente, bastava sua presença!”. Falso...! Uma heresia, ou melhor, um sacrilégio (os dois, pronto!). Como, “Não precisava”? A presença, sem dúvida, é fundamental. Mas o presente também. Assim, não há por que separar um casal tão bonito e feliz: presente e presença. Um casal elegante, semântica e socialmente harmonioso. Reputo-o da mais alta linhagem.
“Você foi se preocupar com presente!? Bastava só a lembrança!”. Lembrança... Ah, sim, claro!: o apelido do presente Falando nela, que ninguém deixe de se preocupar em me oferecer um presente. Faço conta, e muito, dessa preocupação. E não me venha com “não repare eu não ter trazido uma lembrancinha...” Reparo sim, ah, se reparo! E como!
Sempre considerei esteticamente feias as mãos que chegam a um aniversário desacompanhadas. Que solidão constrangedora! Uma entrada nem um pouco triunfal! Presença sem o presente... hum, tão sem-graça! Mesmo que recebida com aparente naturalidade pela gentil pseudoconivência do despresenteado.
Não abro mão de um presente, nem da mais remota possibilidade de recebê-lo. Especialmente, em datas especiais (não importa se apenas para mim ou também para o comércio, repito). E não escondo nunca a frustração quando ouço: “Depois trago sua lembrancinha. Não tive tempo de comprar...”. Tempo? Certamente, um ano foi pouco para tal providência. Uma imperdoável negligência desdobrada em prejuízo. Além do mais, se fossem levados a sério: “Prevenir é melhor que remediar” ou “Não deixe para amanhã o que se pode fazer hoje”, ninguém sofreria tamanha decepção.
Adoro o exercício de abrir caixas e pacotes: lindo e emocionante! O objeto ali, a olhar-me curioso; às vezes, malicioso, tão cúmplice; rindo feliz e agradecido por eu libertá-lo da patética inércia, dos papéis, fitas, laços e da enfadonha prisão. Ouço até o tilintar de estrelas, como se em plena efusão do amor, ao despertar cada presente e senti-lo todo meu! É como o eclodir de carícias, em pleno vôo da poesia, toque sutil a buscar pouso na alma do verso recém-nascido. Uma sensação fantástica desembrulhá-lo, descobrir-lhe a essência e senti-lo em sua inteireza... É o mesmo que liberar nossa criança para se fartar de chocolate (prefiro Sonho de Valsa). E qualquer um pode saborear esse instante. Basta cultivar o dom do encantamento e repudiar o ceticismo sisudo dos adultos amadurecidos à força, dando importância, sim, à “lembrança material”, pois, ao dar a luz ao mais simples presente, o gesto opera o milagre da materialização do afeto, que faz espoucar a emoção e exorciza a indiferença. Realmente, uma dupla de sucesso, o belo casal: Sua Majestade, o presente, e Sua Alteza, a presença! E atenção: o que a delicadeza uniu, não o separe a insensibilidade. Amém!

segunda-feira, 5 de julho de 2010

O PÃO NOSSO...


Lêda Selma


A boca silencia a fome
que também foge dos olhos
e pousa nas mãos vazias.

No milagre do grão, o trigo
no vigor da espiga, o milho,
no calor da fornalha, o pão.

O pão que engole a fome,
o pão que sossega a dor,
o pão que acolhe o sonho,
o pão que renasce a vida.
O silêncio

Lêda Selma

O silêncio é sarcástico:
se cínico, entorta mentiras;
se cético, morde risos;
se sóbrio, camufla verdades
expostas em sorrisos
ocultos na alvura do nada.
O SARAPATEL E A CALIBRINA

Lêda Selma


Lá pras bandas do Rego do Padre, sim senhor! Foi lá que ela, a amaldiçoada, se amoitou, sorrateira que nem serpente, num descaro de botar medo.
A mal-vinda lavou-se, como se quisesse livrar-se de seu próprio cheiro, fitou-se na risca d’ água, que a espiava trêmula e gelada, ajeitou os cabelos esfiapados, como se precisasse melhorar a aparência, e caminhou ladeira acima. Na mão esquerda, uma ceifa enferrujada e de corte afiado.
Medrolino, o sacristão, fazia pouco, acometeu-se de mal-de-engasgo, após a última colherada de um sarapatel apimentado que, escarreirado, escapou pela contramão, e o fez tossir tosse graúda e espichada. E, ainda com a voz sumida e o pasmo do susto entalado, agradeceu a ingerência divina antes que Deus confundisse demora com ingratidão:
De repente, batidas esquisitas na porta e outras tantas no peito do sacristão, que tremeu feito graveto seco à revelia de lufadas de vento.
– Boa-noite, senhora! Procura alguém? – indaga Medrolino, assustado com a visão horripilante que lhe salta à frente.
– Boa-noite! Posso entrar? A demora é miúda, e há muito serviço a ser executado. Falando nisto, o senhor é o sacristão? Vim dar-lhe as boas-idas.
– Boas-idas...? Boas-vindas, a senhora quis dizer – interrompeu-a o embasbacado sacristão.
– Bem, falo com o auxiliar paroquial, o sacristão?
– Não. Nunca fui. Nem quero ser. Por total falta de vocação. Capricho de Deus, sabe? E se é assim que Ele quer, quem sou eu para provocar seu calundu...
– Me disseram que o senhor...
– Disseram errado. Mentiram. Se enganaram. Nem sacristão, nem auxiliar! Nenhum dom pro ofício. Mas se acomode, e venha provar do meu sarapatel e beber um golinho de leite-de-anjo (cruzes! Nada de anjo, pode empolgar a nefasta), isto é, um gole da calibrina.
– Leite-de-anjo...! Se eu apressar o serviço e o senhor tomar um voo sem escala, ainda hoje poderá beber leite com eles...
– Voo...? Agradecido. E leite, nem o de mãe. Recomendação médica.
– Não posso desperdiçar tempo, mas aceito uma provinha do sarapa...
Medrolino pensa rápido: sarapatel, fervendo de pimenta, à fatídica. E uma talagada de calibrina. Até ela se estrebuchar, achará uma saída. Pensamento em ação e a dama das trevas, com pimenta a lhe sair por todos os ossos, cambaleia, sufocada, até arriar.
Com os pensamentos ainda em correria, ele decide livrar-se da traiçoeira. Recolhe num saco de estopa o esqueleto da desconjuntada figura, e o faz despencar ribanceira abaixo.
Aliviado, liga o rádio, toma uma talagada da tal calibrina, desaba sobre o sofá, e dorme. À beira da meia-noite, sobressalta-se: batidas na porta. A contragosto, atende-a. Uma formosa mulher, de silhueta esbelta, cabelos e pele cor de tamarindo, encanta-o.
– Estava perdida por estas bandas, ouvi a música... O senhor é...
– O sacristão. Com muito orgulho. Pra mais de trinta anos. Por excesso de vocação. Um capricho de Deus, sabe?
– Hã... sei...
– Aceita um sarapatelzinho supimpa e um golinho de calibrina? Preparo em meio tempo. Uma mão lá, outra cá. E até lhe faço companhia.
– Sem pimenta, por favor! Ah! não bebo em serviço!
Não tarda, ela olha o relógio e desiste da última colherada do sarapatel. Levanta-se, estende a mão ao rapaz, e lhe sorri uma despedida:
– Obrigada e até logo. Ah! bom sono! Com os anjos, tomara...
– Oxente, até logo...?!
O moleque Traquinildo, malino e curioso, avisou o padre e os vizinhos: da janela, deparou-se com Medrolino, todo arroxeado, olhos enormes e bacentos, boca arregalada e mãos crispadas no pescoço. No chão, perto da caneca, rastro de pinga e um velho prato esmaltado, cheirando ainda a pimenta fumegante.
Uma mulher esbelta, de cabelos e pele cor de tamarindo, surgiu do nada, e cochichou ao padre em tom misterioso:
– Mal-de-engasgo, descambado em morte. Um tal de sarapatel, o assassino. O danado empacou que nem jegue em refugo: nem ia, nem vinha. E o pobre do sacristão, foi-se.
ALGUÉM ACREDITA?

Lêda Selma


Sair pela casa procurando os óculos e se deparar com os tais justo no lugar devido – em frente aos necessitados, isto é, os olhos –, já virou folclore familiar. Sumir as chaves do carro e encontrá-las dentro do copo de uísque, também é pilhéria doméstica. Mas...
– Querido, vou chamar o encanador para consertar o lavatório do banheiro. Espere aí, chamar o encan..., mas como, se nem sei o nome dele, o telefone ou o endereço...?
Resolvido tamanho problema (pelo marido, claro!), a mulher recebe, com exagerada simpatia, o bendito encanador. E um truncado diálogo trava-se entre os dois:
– A pia foi um pouco judiada, né?
– Coitada!, foi mesmo. Parece que até o nome da pobre é um carma. E o senhor acredita que não há quem faça a infeliz fugir do judiador? De tão conformada, já merece até um cantinho nas alturas, quando espetar a alma no mastro...
– O que a senhora tá dizendo, dona? Quem vai espetar...
– Quando espetar, quando. E que não seja por agora, bem entendido. E como assim, quem? Não é dela que estamos falando? A comadre Pia, ora! Nossa amiga comum. E voltando ao graveto, se Deus interferir, ele ainda vai esperar muito por essa piedosa alma...
– Não conheço nenhuma Pia a não ser de cozinha e de banheiro. Mas, deixa pra lá. O serviço tá pronto. Coisiquinha de nada, entupimento farjuto. Um pouquinho de cuidado, e mais nada, resolve o problema.
– Desmazelo, o senhor acha. E pode ser mesmo. Minha serviçal nem sempre me presta bons serviços. Mas como não vivo sem ela, melhor entupida, não, não, melhor mal-acompanhada do que só, concorda?
– Se a dona acha, quem sou eu pra desachar, né não? Bem, se precisar de novo...
– E o senhor tem alguma dúvida? Logo, logo, chamo sua presteza novamente.
– Está certo. Mas, desde que não seja de noite, porque neste período trabalho como chofer de praça.
– Chofer de praça...?! E praça tem chofer...?! Aliás, chofer... que novidade é essa?
– Novidade? Acho que tô é ultrapassado! Eu quis dizer motorista de taxi. Bem, bem, o tempo nunca espera pelo atrasado. Se precisar, é só chamar, bom-dia!
– E queira Deus que o problema, da próxima vez, não seja até maior, bem maior, porque minha serviçal se supera a cada desmazelo. Aliás, nunca vi alguém desmantelar tanto assim as coisas. É estabanada mesmo, de dar dó. Mas, e quanto lhe devo?
– Ah, não vou lhe cobrar por um servicinho à-toa desse. Dá só um cafezinho.
– Só um cafezinho? Só mesmo? Se o senhor insiste...
Com a solicitude e a gratidão saltitantes, a mulher, rapidamente, vai à cozinha. Atabalhoada, derruba algo aqui, mais um ali e, finalmente, dirige-se à sala, com a exagerada simpatia inicial, rebocando uma pequena bandeja:
– Pronto. Eis aqui o seu cafezinho. E, se mudar de idéia, ainda está em tempo de dar a ele a companhia de uns biscoitinhos deliciosos, produção caseira da semibendita serviçal.
– Cafezinho...?! Agradecido. Não tomo café, por causa da gastrite...
– Como não toma café se foi o senhor próprio quem pediu?
– Ih, a madame não me entendeu! Eu quis dizer uma gorjeta, um trocado. Cafezinho é só um modo de falar.

domingo, 4 de julho de 2010

VOA

Lêda Selma


Se teu sonho
for maior que ti,
alonga tuas asas,
esgarça teus medos,
amplia teu mundo,
dimensiona o infinito
e parte em busca da estrela...
Voa alto. Voa longe. Voa livre!
E esparrama pelo caminho
a solidão que te roubou
tantas fantasias,
tantos carinhos
e tanta vida.

(Musicado e gravado por Ivan Lins)
INCERTEZA


Lêda Selma


Não sei se ainda terei
a estrela
que um dia timidamente
possuí
mas perdi.

Não sei se meus sonhos
retornarão
ou se terão enlouquecido
no rastro da estrela.

Não sei se sobreviverei
às fantasias
que me cobriam o frio
e me apascentavam
o sono.

Não sei se ainda colherei
outra estrela
ou se saberei morrer
por tê-la perdido.
POETA APOCALÌPTICA


Lêda Selma



O mundo, desarrumei:
desordenei horas,
desalinhei verdades
e desmontei tratados.

Marcas, apaguei todas:
desmanchei divisas,
depurei mentiras
e desmarquei saudades.

Enlouqueci o espaço:
estrelas, pus no chão.
No céu, terra e poeira.
E na lucidez dos mundos
remexidos, todos os sonhos
(agora, misturados).

E me fiz mais que louca:
poeta apocalítica.
Abri minhas cancelas
e encurralei a vida.
MISTÉRIOS DE MIM



Lêda Selma



Pelo quarto,
meu vulto polarizado,
meu perfume (feitiço de cobra)
e um poema sem segredos.

A ferida vermelha
– bem aqui do lado esquerdo –
fechou a dor e degredou
buscas e sonhos embrionários.

No roupeiro,
o vestido de linho
e a camisola de seda
dizem tudo de mim...
IMPUNIDADE

Lêda Selma


Ah! sim, o crime compensa:
para bandidos e excelências!!!

Habeas-corpus, liminares,
indultos, brechas na Lei,
penas brandas, mordomias...
e a impunidade, acintosa,
zomba do homem honrado
e lhe burla a cidadania.

Ah! sim, o crime compensa:
que o diga a reincidência...!!!

quinta-feira, 1 de julho de 2010

A CULPA? DA DENGOSA, UAI!

A CULPA? DA DENGOSA, UAI!

Lêda Selma

Ah! o Banco do Brasil, de saudosa memória! Em seus tempos de ouro, o sonho de emprego do brasileiro e o genro mais cobiçado pela maioria dos pais ansiosos por alçar à categoria de “senhora” suas filhas desabrochantes ou encalhadas. Uma ressalva: comigo tudo aconteceu naturalmente, por obra e graça do destino. Coisas do amor!
Pois é, um tempo em que ser funcionário daquela instituição bancária era símbolo de status, de bem-estar financeiro e de prestígio social! Uma titularidade e tanto, muito invejável! E a mulher do titulado, então...!? Bastava ostentar, com o orgulho costumeiro, a profissão de seu estado civil e pronto: os olhares ostensivamente se convergiam para suas bolsas, morada nobre dos dourados talões de cheque.
Entretanto, aquele tempo passou, e cultuar a gloriosa memória do saudoso Banco do Brasil é exercício de melancólica nostalgia (o pleonasmo é proposital). E que Deus o tenha, ou melhor, o mantenha! Foi do Collor o primeiro golpe. Depois, vieram outros, e outros, e outros... E, de agonia em agonia, os funcionários dessa época quase sucumbiram. Os que puderam usar a aposentadoria como atalho, salvaram-se. Os que ficaram sofreram, mas conseguiram sobreviver. Aos arrancos e solavancos, é verdade.
Incrível é que, hoje, ainda há quem sonhe, mesmo um sonho já sem viço, em entrar para a família do BB, outrora reduto dos imponentes salários, e hoje, apenas, reduto de sofridos assalariados. Talvez, more aí a razão, sem razão, da decadência dos atendimentos, pois nada os justifica. É necessário mais “Estilo”. Sim, porque, de algumas agências sem “Estilo”, Santo Deus!, melhor fugir, senão, certeza de infarto. E, também, de céu, pois, no caso, o extinto já terá passado pelo purgatório.
Bem, como não adianta chorar sobre o orgulho debandado, vamos ao personagem desta história: pachorrento e movido a álcool, bonachão e espirituoso, ele, um jovem “contínuo” do Banco do Brasil (o office-boy de hoje), muito paciencioso e solícito, sempre ridente e risível, desajeitado em seu um metro e pouco de altura, por um tanto e muito de largura, cabelos corredios e olhos cor de fumaça, cumpria com afinco e tenacidade sua tarefa diária: entregar aos devedores da instituição o indesejado “aviso de cobrança”.
Logo cedo, saía à caça de suas presas. Nunca desacompanhado. Por companhia, a bicicleta de pedigri duvidoso, a “branquela-cheirosa”, sua musa muito amada, concubina de longa data, e, claro! os temidos papéis cobradores. É certo que, não raro, exagerava na afeição à musa e, aí, era um “Deus me segure, por misericórdia!”. E, com o cinismo dos caricatos, dizia cheio de propriedade: “A rua, a bicicleta ou as duas, em conluio, doideceram de vez e tão me entortando as pedaladas!”. E, entre um e outro tombo, os quatro, cúmplices e aventureiros, partiam em busca do desempenho do honroso ofício.
De certa feita, o contínuo, terror dos endividados do Banco do Brasil, pôs-se a caminho para mais uma empreitada. A pasta gordalhufa, de um azul quase celeste, hospedeira antiga de dezenas de documentos, os tais “avisos de cobrança”, como de hábito, era passageira na garupa da bicicleta. Bem atada, ficava imune aos ataques do vento ou de qualquer desequilíbrio previsto ou imprevisto. Assim, lá se foram, mais uma vez, os quatro. Tudo transcorria sob a chancela do corriqueiro, não fosse a trôpega ideia do desatinado “contínuo”: mudar o percurso para encurtar a distância. Como nem a bicicleta, nem a “branquela-cheirosa”, nem os “avisos de cobrança” opinaram, ele tomou (já completamente tomado) a desacertada decisão. E rumou para uma pinguela pendurada sobre um córrego de águas embaçadas e velozes. E, então, foram todos para o brejo, ou seja, para o córrego.
Dia seguinte, perguntado se entregara aos destinatários as cobranças, respondeu de uma só golada: “Se peixe pagar conta, todas as dívidas serão saldadas”.
Ah! sim, a “branquela-cheirosa”? Uma inseparável garrafa de pinga.