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sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Diário da Manhã - 25/12/2011

È NATAL E TUDO SE REPETE

Lêda Selma

Chegou o Natal, mais um Natal e, com ele, ritos e mitos. Em seu bojo, algumas esperanças caducas, desejos senis e a paz, em sua brancura vermelha, apenas, um vulto baço perdido nas trincheiras que, no decorrer dos tempos, amotinaram ódios, disputas, megalomanias, loucuras mundo afora. Apesar de tudo, o Natal ainda ostenta o símbolo da fraternidade e da fé que encena a ceia com Cristo, o aniversariante do dia, mas, na realidade, quase sempre, o menos festejado e presenteado. Enquanto isso, o comércio comemora seu “Papai Noel” particular e gordalhufo.

Com o Natal, os corações se abrem (e os espíritos...?!) e, em polvorosa, desenham sonhos luminosos, expectativas instigantes, momentos especiais. Afinal, Papai Noel é um mago de cabeleira, barba e promessas alvadias e envelhecidas, mas de vigor sempre aceso. E, a cada ano, com crise ou sem crise, o comércio se alvoroça e dá um jeitinho de enfeitiçar crianças e adultos que, em transe, se preparam para o banquete das compras, enquanto os problemas, numa fuga em massa, recolhem-se em asilos provisórios, pois nenhum desmancha-prazeres é bem-vindo em tempos de festejos natalinos. Todavia, o acinte da miséria permanece deitado sobre as calçadas, expondo, à sociedade, homens-molambos carentes de dignidade e de cidadania, banqueteando-se com a fome, com a exclusão, com o vazio das mãos estendido ao sabor do sol e das estrelas, as únicas luzes de seu Natal.

Natal é tempo de impossíveis, de neve em pleno verão, de renas tropicais, de bons velhinhos saracoteantes e incansáveis, de chaminés em espigões, enfim, é tempo de bolsos mágicos, de dribles desconcertantes do comércio sobre os incautos consumidores, de alegrias e realidades mascaradas. Apesar de tudo, é Natal, e Natal instiga sentimentos, encontros, comemorações, esperanças, promessas, embora, muitas vezes, o aniversariante do dia, o Menino Jesus, nem seja lembrado. Que se repense isso neste dezembro natalino.

Fascina-me o Natal e todos os seus ritos e mitos. É quando tiro os sapatos, desmancho as tranças de minha criança interior e deixo-a patinar, planar, lambuzar-se de estrelas, de Sonho de Valsa, e traquinar no reino da fantasia, sem limites. Espero os presentes – encanta-me adivinhá-los, desembrulhá-los, sabê-los meus –, unjo-me com as cores e luzes da árvore natalina e divirto-me com as surpresas deliciosas da noite. Mesmo que as lembranças, enxeridas como sempre, cutuquem a saudade para que me desassossegue. Aí, o vazio ameaça abocanhar-me, porém, o feitiço do Natal hipnotiza-me com um sonho de faz de conta: meu filhote, ali, a festejar comigo cada momento.

Muitas são as caridades acontecidas no Natal. Hospitais, creches, abrigos... recebem doações de toda a espécie e de muitas mãos e, assim, participam da alegria momentânea que caracteriza a fugacidade das festas de fim de ano. Isso é muito pouco. Afinal, não é só no Natal que a fome, a desesperança e o sofrimento clamam por socorro. Que se doem alegria, alimento, oportunidade, trabalho... durante o ano e não, apenas, no Natal.

Apesar de tudo, dezembro exala alegria e enfeita-se com as vestes natalinas para cultuar uma tradição que tem a idade de Cristo. Liturgias, ceias, presentes... é Natal! E quero também muito amor, bens espirituais, pessoas solidárias, amadas, batalhadoras. Quero crianças carregando sonhos, sem a remela nos olhos que lhes embaça o futuro. Quero jovens livres das drogas, das grades, quero mães sem filhos assassinados ou desaparecidos, quero jornais sem letras de sangue, quero sol no dia seguinte e saudades sem ferrões. Ah! e quero também presentes!

Por falar em presente, o meu, um poema:

Volta a Estrela,
florejam os gestos
e no abraço da prece
restos de riSOS
com marcas da veste
do Cristo que chega.

Sonhos se alongam,
o Menino renasce
em rostos sem nomes,
em rastros descalços
de cristos-meninos,
cristos com fome.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Diário da Manhã - 18/12/2011

QUANTOS FURDUNÇOS JÁ PROVOQUEI!


Lêda Selma


Que sou distraída, que me desligo às vezes, que sofro uns apagões inacreditáveis, que perco tudo dentro e fora de casa, é sabido, aliás, mais que isso, é notório. Tanto que, não raro, sou lembrada pelos óculos que, durante mais de hora, procurei desesperada e, ao final, encontrei-os no lugar de onde não saíram: meus olhos. Sapatos, então... Com eles nos pés, já desmontei um guarda-sapatos enorme no afã de encontrá-los.

Outro fato, para muitos inconcebível, minha entrada no elevador de um hotel em Recife, e cuja subida empreendi ao lado de dois cavalheiros, um moreno e outro de cabelos grisalhos, os quais alegremente cumprimentei com simpático e turístico ‘bom-dia para vocês!’. O detalhe intrigante: o de cabelos grisalhos era meu marido (há 41 anos), mas só me dei conta, ao ser abordada por ele, desentendido, à porta da suíte: “O que deu em você, no elevador?”. Confusa, confessei: não o reconheci, ora! Dizem que esse é meu recorde. Será?!

Alguns creditam tal status àquela do casal que, a meu pedido, me seguiria, após sairmos de uma festa, até a porta do prédio em que resido. Tudo bem, e daí, qual o problema? Bem, não haveria nenhum se eu, a alguns quarteirões de casa, instigada pelo medo que me impingia a sensação de alguém estar me seguindo, não houvesse acionado a polícia. Isso mesmo, a polícia! Pois é, acionei-a. Sob a alegação de que certo carro preto (melhor, afro-descendente), dirigido por um suspeito, acompanhado de seu cúmplice, estava no meu encalço com o determinado propósito de assalto ou sequestro. Ainda bem, a luz alta do carro do ‘provável’ assaltante/sequestrador, seguida de chamada para meu celular (“missão cumprida, boa-noite!”), desmanchou tamanho equívoco. Embora aliviada, nem me lembrei de agradecer a gentileza do casal. Só dia seguinte. Até hoje, os dois desacreditam daquele meu “antológico branco”, como o catalogaram.

Um furdunço e tanto promovi, convenhamos. Aliás, promovo. Afinal, não sou parcimoniosa na arte de perpetrá-los. Tanto que, de outra feita, minha filha incumbiu-me de segurar uma sacola, na qual havia um par de sapatos de grife, recém-comprado no shopping, enquanto efetuaria um pagamento no caixa eletrônico. Solícita, acatei o pedido e dirigi-me a uma loja; dei uma olhadinha básica nas vitrines e coloquei, displicentemente, a incumbência, ou seja, a sacola, sobre o balcão e deixei meus olhos e minha curiosidade desfilarem ali e acolá. De repente, percebi uma sacola sozinha sobre o balcão, modelo esquecida, abandonada mesmo, e avisei à moça do caixa: alguém esqueceu esta sacola aqui. Não me bastasse isso, resolvi perguntar às pessoas da vizinhança: esta sacola é sua? E sua? Ei, está procurando uma sacola? Ante tantas negativas, sugeri à funcionária da loja que recolhesse a esquecida até que a dona fosse buscá-la.

Minha filha voltou, e, ao nos dirigirmos à escada rolante, a surpresa: “Mãe, cadê minha sacola?!”. Acordei. Hum... a tal sacola...! Ih! estou perdida! – concluí. Refeita do susto, o jeito, dizer-lhe: corre, filha, pois, se ninguém decidiu portar-se de forma desonesta, e se a atendente aceitou minha sugestão, pode ser que ainda encontre sua sacola.

O pior foi a reação da moça do caixa que, em estágio máximo de estranheza e cheia de suspeitas, esbravejou: “Como assim, sua mãe deixou a sacola no balcão, se ela, de corpo presente e em viva voz, perguntou à loja inteira de quem era a maldita?! E você me vem com esta agora?! Francamente!”. Fui salva, e a reputação de minha filha também, pelo comprovante de compra da sapataria, ufa!

sábado, 3 de dezembro de 2011

Diário da Manhã - Dia 3/12/11

E AGORA, “SENHOR”?

Lêda Selma


E agora, VERDÃO?
O campeonato acabou,
a luz apagou,
a torcida sumiu,
a esperança esfriou,
e agora, VERDÃO?
E agora, Você?
Você que tem nome,
que zomba dos outros,
você que faz gestos,
que vinga, persegue,
e agora, “Senhor”?!

Está sem discurso,
está sem caminho,
já não pode gritar,
tripudiar já não pode,
o engodo pifou,
a Série A não veio,
o sonho não veio,
o riso não veio,
não veio a coragem,
tudo secou,
a dignidade mofou,
tempo esgotado,
entende, “Senhor”?

E agora, “Senhor”?
Sua rude palavra,
seus instantes de fúria,
sua tirania e arrogância,
sua megalomania,
sua sanha por louros,
seu trono de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, sua gana,
pois é, convenhamos,
a verdade matou.
“Senhor”, e agora?

Com a chave na mão
quis trancar a porta,
mas o esmeraldino
fez nascer o grito,
no secar do sonho
do alviverde aflito,
que sofreu demais
lá na Segundona.
E agora, “Senhor”?!

Se você parasse,
se você deixasse
o VERDÃO em paz,
se você cansasse
dessa obsessão
que sufoca e atrasa
o pobre Goiás,
mas você não cansa,
quer seguir seu tino,
você é duro, “Senhor”!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem o discurso tolo
para se escorar,
sem a mentira nua
para se safar,
só vassalos tontos
ficam ao seu lado
com o AMÉM na língua
para o louvar.
E o VERDÃO da Serra,
relegado às traças,
por sua obra e graça,
que vá se danar!
E agora, “Senhor”?

Que fuja a galope,
“Senhor” dos punhais,
este tempo triste,
marcado por nódoas,
e não se constranja
de o fazer também,
para que o VERDÃO
possa se salvar.
É agora, “Senhor”!


Cada um, Drummond, tem o seu “José”.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

POEMAS DE LÊDA SELMA

NEM SEI DO AMOR...



Escondi atrás das sombras,
teu silêncio arredio.
E o vento que te fez pua
teceu farpas, enredou sedas
nos sonhos esmorecidos
em fartas plumas de luas.

Traguei teus restos de nadas
e bani a dor que era tua.
Fisguei de teus olhos, vontades,
e de teus guizos e risos
fiz música, provei prazeres
e me fartei de saudades.

Agora, revejo instantes
e me imanto no encanto
que rabisquei em teu corpo
quando meu corpo sonhava.
Nem sei do canto esquecido
no canto em que deixei perdidas
as sobras de tuas luas...

Nem sei do amor que nem sei
se escapuliu ou nasceu
naquela tarde vadia.
Só sei dos sonhos que sinto,
e desta ferida vermelha
– bem aqui do lado esquerdo –
mofando em meus labirintos
e me vigiando de esguelha.
Só sei das dores que espanto
e dos medos, inda tantos,
suados de amor e vinho.



TERRA-MÃE




Das estrias da terra,
a vida em floradas de trigo,
e o grão germinando vidas,
desnuando sonhos
e saciando silêncios.

Das funduras da terra,
o sustento à espera
de mãos parideiras
que sopesem dores,
silenciem sedes,
aparem estrelas.

O homem sua, e sangra,
e mistura suas dores
às vísceras da terra,
para adubar colheitas
de floradas vindouras.

É o rito da vida,
é o ciclo da espera,
é o esterco humano
pulverizando a fome.

domingo, 27 de novembro de 2011

Diário da Manhã - Dia 27/11/11

DE NOVO, ANUNCIATO...

Lêda Selma

Anunciato, o mensageiro-mor das notícias indesejadas e especialista na arte de “encurtar a distância com o primeiro atalho”. Sim, aquele que, incumbido de comunicar a certa mulher o falecimento do marido, chegou, tocou a campainha e foi logo “desembrulhando a incumbência”: – A senhora é a viúva do Zequinha Amado? –. Naturalmente, desentendida e alarmada, a mulher disse “Não!”. E ele: – Não? Hum... Quer apostar?!

Pois bem, Anunciato, com aquele seu jeito mal-ajambrado, olhar faiscante e nenhum riso atrás do humor desajeitado, não se constrangia em carregar as “malfeitanças da vida” e entregá-las, fresquinhas e de supetão, a quem de direito ou de merecimento.

Também foi assim com o velho Leocárdio, homem solitário, carente de posses e plantador de milho. Bem cedinho, e já na lida, foi abordado por Anunciato: – Olá, velho madrugador! –. Recebido com um alegre “Bom-dia!”, o desapiedado transportador das funestas notícias retrucou num fôlego só: – Eu ouvi “bom-dia!”? Se eu fosse o amigo, desaceleraria esse tom alegre e tamanha empolgação... A propósito, ao sair de casa, hoje de madrugadinha, a tal ainda estava de pé? Pois esse é o problema: não está mais... Por obra e culpa de um incêndio besta, a pobrezinha arriou... Foi-se, mas sossegue, ela deixou vestígios.

Por tudo isso e muito mais, Anunciato recebeu vários epítetos: “Reencarnação do azucrim”, “Possuído das trevas”, “Mensageiro dos infernos”... Mas nunca se abalou com isso, convencido de que simplesmente cumpria o que sua lúgubre sina lhe determinava. E sempre com a mesma justificativa: “O pior é o acontecido e não, o repassado. E o melhor é engolir tudo de uma só vez do que ficar engasgado”. E, enquanto filosofava com certo deboche, esperava a chegada do imprevisível para, de novo, entregá-lo a seu destinatário.

Anunciato tinha lá seus vícios. Chegadinho numa água que mandacuru abençoa, ou seja, a famosa cachaça, Anunciato também se afeiçoou ao jogo, de forma perigosa. Jogava tudo e de tudo, tanto na calada das noites, quanto na barulhada dos dias. O importante era jogar e, se possível, maquiavelar estratégias para encher os próprios bolsos e os de seus parceiros; naturalmente, um ato “patriótico”, ora! E o Brasil deveria orgulhar-se disso, apregoava, afinal, “encher os bolsos é um jogo que sempre anda muito em voga cá e acolá”, era seu mais consistente argumento.

Todavia, é sabido que, nem sempre, o mar, ou melhor, a mesa está para jogo. E nunca é demais saber: um dia é do vivaldino e o outro, do destino. E Anunciato, como todo jogador, foi surpreendido, certo dia, em altíssimo tom, para alegria de muitos. Uma surpresa e tanto, daquelas de despachar qualquer um, às pressas, para os domínios de pra lá de bem depois, vulgo, além. Qualquer um...? Não Anunciato.
Mesmo perdido quase tudo o que tinha, o que não tinha e o que pretendia ter – ficou mais liso que búndegas de recém-nascido –, ainda se valeu do curinga saído de um de seus esconderijos, tão logo o ganhador concedeu-lhe um prazo para a quitação, apesar da exigência de um imóvel para salvaguardar a dívida.

Anunciato não se fez de pressionado. Prontamente, acedeu à exigência de seu credor, porém, com uma ressalva: que não fosse a casa onde residi, há mais de sessenta anos, herança paterna de valor afetivo inavaliável. Hipotecaria outro imóvel, de valor apenas pecuniário, situado em avenida tranquila, arborizada e de fácil acesso. Congestionamento? Só de pedestres, às vezes. Assim, acertaram o dia e o horário em que iriam ao cartório efetivar a transação. E foram...

Dois dias após o encontro – malfadado encontro, frise-se –, Anunciato acordou com o corpo ainda bastante dolorido e a cabeça bem confusa. Três espreguiçadas e algumas bocejadas depois, heurecou: o motivo de toda aquela estropiação corporal, umas coronhadas generalizadas, por obra e desgraça do tal credor. O homem, furioso, coronhou a cabeça, adjacências e periferias do agourento devedor, ao descobrir o tipo e a localização do imóvel que lhe foi dado como pagamento da dívida: um jazigo, com três hóspedes, no cemitério local.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Diário da Manhã - Dia 13/11/11

NÃO RIAS DE MIM, ARGENTINA!

Lêda Selma


Uma semana em Buenos Aires – buenos y fríos aires! – apreciando as belezas e o clima portenhos. O dia da chegada, a princípio, pareceu-me inoportuno, pois Cristina Kirchner pleiteava reeleição à presidência da Argentina. No entanto, tudo transcorreu no ritmo rotineiro, e, do processo eleitoral, nem indício. A não ser pela “Lei Seca”. Nada de bebida durante o dia, só após às 20h, apregoavam. Porém, à moda ‘jeitinho brasileiro’, ao final da tarde, alguns barzinhos e ‘empanaderías’ liberaram, de forma velada, assim, debaixo da lei, a bebida alcoólica. E quem estava sedento por ela, saciou a vontade, bem à vontade.

Parênteses: de mamando a caducando, do inculto ao intelectual, por lá, não se usa presidente, é presidenta mesmo, e para qualquer mulher que ocupe a função de presidir, não importa o quê. Tampouco, ouvi sandices modelo “eleganta”, “doenta”, “pacienta” e outras aberrações tão usadas por aqui, como forma de comparação, com o fito único de ridicularizarem o uso legítimo do vocábulo feminino (e não é que já infestaram de novo minha caixa com textos com tal conteúdo?!). Pois é, los hermanos não praticam essa modalidade de asneira, essa bobajada sem eira nem beira, ao contrário, mostram-se civilizados, bem informados e, sem dúvida, respeitam e acreditam nos dicionários. Bem como os franceses, é bom que se diga.

Bela, elegante e pomposa, como sempre, Buenos Aires! Avenidas de pernas esguias e coxas largas, assediadas por uma arquitetura exótica, eclética, que abarca variados estilos (colonial, neoclássico, art nouveau, art déco, moderno), cuja história esculpe personagens, e cuja memória desperta patriotismo. Um rosto de sol, incrustado no azul e branco da bandeira, tremula altivo, e doura a dignidade e o orgulho argentinos, sempre expostos. Exacerbada, a índole nacionalista desse povo.

O tango, seu genuíno patrimônio cultural. Emocionante cada espetáculo, pela beleza plástica, pela presença cênica, pelas coreografias, pela leveza dos pares. Momentos plenificados na sensualidade. Os toques, o olho no olho, os corpos colados a roçarem intimidades, pernas entrelaçando-se em malabarismos instigantes, contorções voluptuosas, embevecidas pela música, enfim, uma conjunção de arte e de paixão. O tango tem alma rubescente que incandesce ao primeiro contato. Ah! e aquela dançarina linda, porte de rainha, vestido vermelho com fenda enorme a lhe devassar a perna e o caminho das flores, ao som de La Cumparsita, enroscando-se, lascivamente, em seu parceiro... As fantasias da plateia também rodopiam entre os passos do casal.

A carne saborosa e suculenta, de estirpe nobre, assim como o Dulce de leche, tombados pelo gosto dos que se curvam às suas delícias. O sorvete artesanal da Fredo (de doce de leite, claro!, em suas muitas variantes), um desafio, já não fosse um acinte, à disciplina dos diabéticos e à dieta dos gordalhufos. Por falar em gordalhufos, Maradona, outro patrimônio nacional.

O peso do peso argentino, nem tão pesado assim, um detalhe interessante, embora alguns comerciantes tentem engambelar o turista com o intuito de um ganho a mais. Todavia, fato desconcertante e injurioso, o derrame de notas falsas. Centenas habitam os bolsos dos taxistas. Inacreditável. E o pior: todos estão cientes disso, já se tornou fato corriqueiro. Os próprios hotéis alertam os turistas para os cuidados necessários. Quase ninguém fica imune a tal agressão. A estratégia é afrontosa: o taxista recebe a nota, troca-a sem ser percebido, devolve-a ao passageiro, sob o argumento de que é falsa, e exige-lhe outra. Desse modo, cobra a corrida duas vezes e, de sobra, o lesado fica com a nota falsa.

Algo incompreensível: por que a polícia e o governo fazem vista grossa a esse tipo de crime? É sabido aqui, lá, acolá, que pesos falsos, em fartura, fazem parte da rotina dos condutores de táxis e, mesmo assim, a impunidade grassa majestosa nas ruas de Buenos Aires, incentivando-os a uma prática criminosa que enodoa a honra argentina. Por que tal conivência? A cumplicidade, explícita na falta de ação das autoridades competentes, é intrigante. O turista não merece tamanho desrespeito. Portanto, não rias de mim, Argentina!

sábado, 5 de novembro de 2011

Diário da Manhã - Dia 6/11/11

SONSO?! DE JEITO E MANEIRA!

Lêda Selma


Sonso por conveniência, nordestino de nascença e curioso por vocação, desde criança, ele queria porque queria ser padre. Achava bonito aqueles homens embatinados e de semblantes sisudos, zanzirrezando, de um lado para outro, com as mãos enlaçadas ora na frente, ora atrás do corpo, olhos estatelados no chão e um alheamento de fazer gosto. Tampouco, cansava-se de apreciar, mesmo de longe, a rotina matinal dos padres, no pleno gozo do desjejum. De encher a boca e atiçar o estômago! Não que fosse comilão – os padres, sim, por fama ou tradição, sabia lá –, apenas, gostava de degustar mentalmente toda aquela fartura.

O menino propagava sua vocação sempre. Melhor, então, estagiar como coroinha – sugeriu um vizinho –. Depois, ascenderia a sacristão e, mais tarde, após o noviciado, ordenar-se-ia padre. Pensamento acionado, ação ativada. De imediato, carecia de certa intimidade com os rituais da igreja. As ladainhas, ah! decoraria todas! Algumas, até em latim, caso necessário; a preparação do altar para as missas e celebrações, outro passo importante do aprendizado. Enfim, prestaria muita atenção a tudo e, com destacado esforço, logo, logo, estaria afiado para a nobre função. E assim, o menino com jeito de sonso começou a envolver-se com as coisas relacionadas à igreja, o que provocou bastante entusiasmo no vigário. Alguns duvidaram de que aquele menino bronco fosse talhado para o ofício.

Não tardou nada, ele se arvorou em coroinha, com todo gosto e orgulho. Nas liturgias, vestia-se de branco (à moda camisolão), inundava o rosto com um ar de contrição e nos olhos deixava um brilho chamejante exalar alegria. O menino parecia anjo nessas ocasiões. No tempo vazio, arrumava o altar principal e os adjacentes, trocava os ornamentos, higienizava as imagens, fazia tudo o que um candidato a padre devia saber, exaltava-se todo confiante.

Certo dia, a empregada da casa paroquial abordou-o, indignada:

– Filhote de Cruz Credo, quem mandou você bulir com a Eulália? A pobre ficou toda amassada por causa de sua malinagem! E agora, perdeu o prumo. Nem pode mais ficar na igreja. O vigário vai saber...

– Eu, dona Santinha? Eu... eu nem conheço essa tal aí, juro! Também, não ia bulir com ela de modo algum, porque desejo ser padre e padre não tem tino pra essas coisas, não pode praticar essas bulições, ora! A moça tá mentindo, juro!

– Mexeu sim, seu canhudo (mistura de canhim com rabudo), e não jure falseado! O vigário vai lhe retorcer as orelhas e lhe arrejeitar pra bem longe, viu, enxerido! Moça...? Que moça?!

– A tal Eulália, ora essa!

– Não se faça de sonso, malino! Não falei de moça, falei da Eulália, que estava ali, ó, quietinha, naquele vaso vistoso, ladeando o altar, com suas flores avermelhadas.

Enquanto concluía os primeiros estudos, o menino resolveu trabalhar. Na padaria de “seu” Bruno, o italiano gordalhufo, estreou como assistente de padeiro. Porém, do que gostava mesmo era de entregar os pães à vizinhança, bicicletiano em sua magricela azul e de senilidade à vista. Assim, mal a manhã se arregalava no céu, rodas à obra.

Num certo dia, freguês novo. De riso escancarado e fala possante:

– Fico com os pães só se o pagamento for por quinzena.

– Por quinzena? Hã... por quinzena... Ah! sim, quinzena... (Ai, Santo protetor dos desvocabulados, diga-me, por misericórdia, o que é quinzena?). Se quiser, pode ser também por novena, trezena, tanto faz!

Aos treze anos, foi para o seminário. Lá, diziam que, ao ser ordenado, o rapaz submetia-se à castração. Temeroso, matutava: “É certo que meu patrimônio não tem utilidade para as funções sacerdotais, mas, por garantia, gostaria de preservar o inútil, pois vai que, lá na frente, lhe apareça serventia...”.

Apesar da dúvida, a ordenação. Uma cerimônia solene, emocionante. Sobre o tapete vermelho, deitado de bruços, forma de cruz, em sinal de humildade, o rapaz sentia a aflição cutucar-lhe o “patrimônio”.

No cumprimento do rito litúrgico, o bispo pedia: “Alva”. “Estola”. “Turíbulo”. “Mitra”. “Capa”.

– Epa! Capa?! Vixe, chegou a hora...! Melhor, desabalar-me em correria e salvar meu patrimônio. Capado? Nem pensar!

Diário da Manhã - Dia 30/10/11

CUIDADO COM A MENTE QUE O PENSAMENTO É DE BARRO...?!

Lêda Selma


Em um daqueles domingos desfrutados no clube, certo amigo, homem de idade grisalha, porte e cabelos acanhados, olhar tateante e fama de mulherengo, chegou afobado, devido ao adiantado da hora, pois a tarde já se alaranjava em arribada. Mal acomodou-se à nossa roda, foi logo engatando uma esdrúxula prosa:

– Pensei não encontrar mais os amigos aqui. Todavia, meu atraso tem nome: ressaca! Também, depois dos excessos de ontem à noite... É, tirei a vontade da miséria, e que vontade gulosa... É, já não era sem tempo...

– De que vontade está falando, homem?!

– Bem, tudo começou já no amolecer da tarde, quando parti para uma emocionante aventura, dantes jamais experimentada. Ah! sim, um detalhe importante: passei toda a semana empanturrado de desejo, doidinho, doidinho, por uma frangota jeitosa que, há alguns dias, gingava toda faceira e cantarolante pela vizinhança! Então, decidi ir ao seu encalço; precisava domar aquela morena gostosa, de coxas firmes e roliças, peitinhos apetitosos, ancas fartas e insinuantes... Hum, toda aquela suculência em pleno fulgor da juventude...! Quem sabe, ainda virgem, aquela criatura encantadora, imaginei. E isso instigou-me ainda mais o olho gordo e a vontade gulosa...

Tamanha sem-vergonhice atiçava os homens, cúmplices e invejosos da saga do falastrão, a obscenos “Oh!”, “Hum!“, “Ai!”, completamente extasiados com o que ouviam. Indigneu-me:

– Que sujeito mais sem tipo, você, hem?! Credo! Nem a idade lhe sugere o senso do ridículo!? Imagine só se alguma menina lhe daria trela!? Melhor conter-se e tomar tenência, isso sim!

E os homens, com a curiosidade aguçada, animavam o conquistador-mor do cerrado a encorpar ainda mais a voz e cantar de galo, a valer:

– A belezura bem que insistiu em escapar – só para fazer gênero, claro! –, mas, com astúcia, persistência e fôlego, venci a fujona. E já nos meus braços, embora ainda vacilante, talvez por temer o previsível desfecho, propus-lhe uma fuga glamurosa. E, como quem cala consente, já que espernear não me soava como legítima resposta, raptei a donzela numa carreira só. À moda princesa, carreguei-a com pompa e cuidado. Pronto, estávamos em casa. Ilesos.

– Em casa, ilesos... Baita aventur! – alguém da turma entusiasmou-se.

– Continue, vamos! – outro insistiu.

– Bom, após aquelas preliminares indispensáveis, deitei a dengosa no jeito e dei-lhe o trato esperado. Ela gemeu, estremeceu e, rendida, aquietou-se. Em seguida, o banho, o mergulho naquela água escaldante, hum...! E eu a desnuá-la, a tocar-lhe a carne de quentura e maciez tamanhas. E meu desejo, ali, indomável, à flor dos olhos, das mãos, da boca... E entre uma mexida e uma virada, o vinho a festejar minha inusitada conquista. Enfim, ritual consumado... E meu prazer, aos pulos, celebrando aquele desbragado gozo... Um gozo celestial, benza Deus!

Não aguentei e, de novo, interrompi-o incisiva:
– Que falta de compostura detalhar uma noite tão íntima e lasciva! Coisas pessoais, além do mais, dessa natureza, devem restringir-se aos interessados. Olhe, um homem de tal idade precisa dar-se ao respeito em vez de se enaltecer por seduzir mocinhas incautas e indefesas, mesmo que tudo não passe de fantasia, de imaginação, pois, como lhe disse, descreio de seus feitos libidinosos. Afinal, quem revigora velho é geriatra, ouviu, velho devasso?! Francamente...

Uma outra amiga, mulher de um daqueles tais cúmplices, invejosos e extasiados, também repudiou, possessa, aquela apologia injuriosa a um descalabro sexual de desmedido porte. E foi então que o libertino, com todo o desdém arregalado no riso baço e atrevidamente graúdo, debochou de vez:

– Calma, calma, senhoras, que braveza é essa?! Confesso: errei! E até me penitencio. Fui inconsequente e irresponsável. Sem dúvida, molecar desse jeito não combina com minha idade, todavia, a vontade é fraca, fraquejei, cometi uma leviandade, porém, valeu a pena, e, agora, de nada adianta chorar sobre o malfeito perpetrado. Mas, cá pra nós, que aquela franguinha roubada deu um baita molho pardo, ah! isso deu!

domingo, 16 de outubro de 2011

Diário da Manhã - Dia 16/10/11

SEVERINO E A CALIBRINA

Lêda Selma

Desde cedo, o moleque Severino já praticava suas severinices. A cabeça, naturalmente chata, acomodava chatices e traquinices que deixavam mãinha fulamente severina e com os cabelos em posição de alerta. E aos vizinhos, costumava desabafar: “Arre, ema, que sujeitim mais espoleta! Pra certas coisas é ronceiro que só; pra outras, mais acelerado que ventania. E gosta de um arerê que só vendo; sim, não perde uma única oportunidade de se meter em trapalhadas”. É, coração de mãe é sábio...

Também, desde pequeno, já se mostrava falastrão e com tendências a esconder as estripulias de seus iguais. Por isso, não tardou nada, foi eleito Presidente da Câmara dos Estudantes de um grupo escolar qualquer do nordeste. E foi, então, que aprimorou seu talento para o esconde-abafa. Um paninho quente, aqui, para esconder a safadeza de um colega; uma peneira, ali, pra tapar o sol, caso um amigo cometesse certa esperteza; um deixa disso, acolá, se algum aluno faltasse com o decoro escolar... E, assim, aos poucos, o menino viu encorpar-se sua fama de protetor dos mais favorecidos, ou seja, dos mais favorecidos na arte de negacear, de trapacear, de avantajar-se em tudo. Bastava um estudante propinar (com vistas a uma nota melhor) e olha Severino tentando salvá-lo da punição. Se um outro mensalasse (por um abono de faltas), o garoto Severino agia em sua defesa. Maracatu, isto é, maracutaia, era com ele. E tudo terminava, sempre, em sarapatel, buchada ou chouriço.

Já na adolescência, o menino começou a se preocupar com o futuro. Ser ou não ser (político) era a questão. Sentia que levava jeito para o ofício. Afinal, tinha aquele traquejo tão providencial em determinadas situações; sabia engambelar qualquer um com notória maestria; não se importava com o que diziam, mas com o que fazia. Portanto, talento não lhe faltava. Nem ocasião para demonstrá-lo. A mãe, entretanto, preferia que o filho seguisse os passos de “Padim Ciço”; a avó, os de Luiz Gonzaga; os antigos colegas de grupo escolar viam-no como líder político e os mais afoitos até se lembraram de Lampião, cabra retado e símbolo da coragem nordestina. A tia-avó queria-o comerciante. E estava certa. Parênteses para explicar o porquê: o moço já havia exibido sua aptidão para o ramo, enquanto auxiliava o pai no armazém “De tudo um pouco”, anotando na caderneta as compras “no fiado”. Certo dia, um impasse: foram vendidos uns arreios e, por distração, o rapaz esqueceu de nomear o comprador. Mas a solução veio a galope: “debito no nome de todos os devedores do mês, que são mais de cem, e pronto! Se algum reclamar, peço desculpas pelo equívoco; assim, pego o devedor e, de gorja, os que, por constrangimento ou distração, não reclamarem. Um lucrão!”.

Severino, ainda na juventude, afeiçoou-se à calibrina, a famosa água-que-anjo-enjeita (embora já os santos, por tradição, contem sempre com a costumeira dose). E, por falar na tal, à cachaça nordestina, a depender de seu pedigri, Severino sempre impingia as mais jocosas alcunhas: “magrela”; “sensitiva”; “CPI”; “fuxiqueira”; “dadivosa”; “propina”; “desgoelada”; “sirigaita”; “mensalona”; “falcatrua”; “habeas corpus”... enfim, um arsenal de apelidos. Eh, Severino boquirroto, gente!

Festeiro por herança paterna, de certa feita, Severino acompanhou uns amigos a uma festa. Muita moça bonita, foguetório, políticos, comedeira (também no sentido de comilança) e a infalível calibrina. Ih! Severino estava feito! E que o estoque fosse gorducho! Afinal, talagadas e talagadas nunca foram suficientes para arriar Severino. Bom de copo, o moço esvaziava quantos lhe apetecessem. Naquele dia, entretanto, algo deixou-o intrigado. Ainda na terceira dose, de repente, começou a ver a cantora triplicada. Desentendido e encabulado, falou ao amigo mais próximo:

– Tô acabado, cabra! Mal comecei a beber, já vejo a moça xerocopiada, oxente!

– Calma, esse-menino! Que desassossego mais retado! Tu é mesmo o rei das trapalhadas! Num tem triplicação nenhuma, homem...

– Não?! Como não, se estou vendo três cantoras...

– É que as tais são trigêmeas, oxe!

sábado, 8 de outubro de 2011

Diário da Manhã - Dia 9/10/11

SÓ SE DEUS VIER PESSOALMENTE...

LÊDA SELMA

Padre Santinho recebeu, em confessionário, a visita de um fiel esbaforido e encabulado, Tristino, sujeito anguloso, pacato, de meios risos, franqueza inteira e pouca prosa. Um tanto sem jeito, depois de forçar uma tosse seca e falhada, o homem logo avisou o confessor:

– Olha, padre, o assunto é confidencioso, reservoso mesmo. Deus me livre de cair na boca do povo. Já basta precisar cair no ouvido do senhor, isto é, nos ouvidos, porque um fuxica logo pro outro...

– Fique tranquilo, filho, segredo de confissão é inviolável...

– Ela também, padre...

– Ela...?! Calma, filho, sem afobação! Diga-me o que lhe atormenta a alma...

– Alma não, padre, antes fosse! A atormentação é no corpo; a alma fica só na espreita, aperreada.

– Então, o que aconteceu?

– Desaconteceu. Desde que me casei com a Duvirge toda noite é a mesma repetição: deitar, relar, tretar e não consumar.

– Mas vocês estão casados há seis meses...

– Seis meses de tenta, recua; bate, volta; lambisca, mas não petisca. Uma desdita a minha vida. Duvirges diz que não casou pressas coisas, que tô é possuído, que toda noite ela sente um intruso descarado roçagando suas propriedades...

– Você foi com jeito, filho, com carinho?

– Se fui, meu padre, se fui...

– E ela, filho, não se rendeu?

– Ela? Só a renda da camisola! A diáboa da mulher recusou meus carinhos, me chamou de “arrenegado, pecador desavergonhudo, filho do troço ruim”. Esbravejou que só quero “safadagem” e gritou enfurecida quando lhe mostrei minha vontade: “Recolhe já esse espantalho, larga de possuição e me deixa drurmir”.

– É, Tristino, só mesmo conversando com sua mulher. Que ela venha falar comigo, sem demora.

– Nestorinha, padre, entrego pra Duvirge seu recado. E que Deus Se faça de enxerido e ajude o vigário nessa tarefa. A bênção, padre.

Maria Eduviges, a esperada, foi recebida, na sacristia, pelo padre, que a acomodou em uma cadeira surrada e pouco confortável. Sem rodeios, inquiriu-a:

– Minha filha, você gosta do seu marido?

– Gosto, sim sinhô, e é demais, pade. Home bão, trabaiadero e honesto quinem ele, só ele. Por isso, zelo da casa, capricho na boia, só pra agradar meu Tristino.

– Está certo, filha, mas e as obrigações de mulher casada? Ele é seu marido, tem lá seus direitos, porém, se sente rejeitado, à noite, quando se deitam, porque você não o aceita, recusa seus carinhos... está me entendendo, filha?

– Num tô entendendo o sinhô, e meu marido, antão, num entendo de jeito maneira! O home tá cumas esquisitice, cruzincredo! Dorme pelado, pula inriba de mim, me fala cada impropério, bole com minhas particularidades, e me cutuca de noite com um cutucador medonho.

– Eduvirges, minha filha, tudo isso se chama amor e é do amor que nascem os filhos, compreende? E o amor é abençoado por Deus; fui porta-voz do Senhor no dia em que casei vocês!? Deus autorizou seu marido a amá-la e a ter filhos com você, pode acreditar.

– Querdito não, pade. Deus num ia mancomunar com essas perdição, oxe! Tristino deve é se exemplar em São José, que nunca molestou a Virge Maria, só assim o encapetado achará conformação. Eu lhe prigunto, pade: o marido de Maria, a Virge, reclamou pra Deus da recusa da muié?! Não. Nem podia, pruquê foi Deus mesmo quem ordenou ao Isprito Santo a fazedura do fio, ora! Ele se conformou e pronto. Tamém, sou moça de famia, pade, e já até palavreei com Deus, assim: Pai, dê mais um servicinho pro seu santo amigo, pois resolvi deixar pro conta do enviado do Sinhô a consumação do casamento. E inté já tô aqui no jeito, só esperando.

– Que doidice é essa, filha minha? Vou explicar mais explicad...

– Dianta não, pade. Num arredo esta decisão da cabeça nem que o Isprito, o Santo, vague o lugar dele pro Zé, por causa de seus aperreios. E a num ser que o próprio Deus, por escrito ou pessoalmente, Se abale até aqui pra desatender minha resolvição, vou ficar quietinha, aguardando a santa lua de mel.

sábado, 1 de outubro de 2011

Diário da Manhã - Dia 2/10/11

CHORO POR TI, MEU VERDÃO!

Lêda Selma

É sabido e ressabido que sou esmeraldina legítima, que tenho o verde e branco entranhados na alma, no coração, na emoção, nos sentimentos e, sobretudo, na paixão. Digo legítima porque meu amor ao Goiás Esporte Clube transcende interesses, vaidades, oportunismos. Sempre fiquei à margem dessa avalanche de posturas que, passa ano, chega ano, sempre ronda o glorioso Verdão da Serra, marcado, no decorrer de décadas, pelo autoritarismo, pela megalomania, pelo monopólio de poder.

Nunca esperei retribuição, mesmo quando, por duas vezes, nos mandatos de João Gualberto e Syd de Oliveira Reis, dois esmeraldinos de estirpe, presidentes de destacada atuação, apesar das pechas que lhes foram injustamente impingidas, ocupei cargo na Diretora do Clube, sem qualquer remuneração (nem ajuda para combustível). Bastava-me a honra de servir meu Clube. E o fiz com alegria e despojamento, como convém a um autêntico esmeraldino.

É incontestável que, para as glórias alviverdes, muitos contribuíram, não apenas um ou outro; muitos, porém, vários desses vivem à sombra de mitos de barro que, se contrariados, os alijam do Clube, como algo descartável. Ao ato de assenhorear-se de um poder temerário, dou um nome: arbitrariedade.

Tempos de ouro, já viveu o Goiás. De respeito. De admiração. De credibilidade. De orgulho goiano. Goiás pioneiro em tudo. Referência sem igual: na organização, na compostura, na seriedade, na solidez estrutural. O Goiás, NOSSO bem precioso, patrimônio de uma família, sim, de uma família sem sobrenome, a FAMÍLIA ESMERALDINA, composta de sócios e torcedores, muitos deles, genuínos amantes das cores que construíram a História do Clube e consolidaram sua tradição no âmbito nacional, como expressão maior do futebol do Centro-Oeste e membro da elite futebolística brasileira.

Melchior Luiz Duarte colocou o Goiás no, à época, Campeonato Nacional. Raimundo Queiroz, na Libertadores da América e Syd Oliveira preparou-o para brilhar na Sul-Americana, em 2010. E só não integrou a comitiva que viu o time disputar a final, porque já não era mais presidente do Clube, por força de desígnio ‘superior’.

Choro por ti, meu Goiás, por saber-te presa de desmandos em nome do poder. Choro por ver-te aviltado por negligências e omissões. Choro pelo descaso que humilha tua História e enodoa tuas cores. Choro, meu Goiás, também de saudade daqueles tempos em que não existiam boleiros e sim, jogadores que vestiam e AMAVAM tua camisa; em que não existia poder absoluto e sim, companheiros voltados para o teu crescimento. Pois é, choro por ti, meu Goiás, ao me lembrar desse tempo de honradez, a cada dia, mais longe...

Hoje, meu Goiás amado, és motivo de chacota nos bares, nas praças, nos estádios, nas reuniões, nos sites, na mídia, a mesma mídia que cria deuses e protege demônios. Tudo o que conquistaste escorre nos ralos da banalização. Estás no cadafalso, e teu carrasco, cinicamente, assiste, de camarote, ao teu desespero, antes de foicear-te, qual mensageiro da morte. Suplicas por socorro, mas continuas à míngua. Enquanto isso, frases falseadas, jogos ridículos de palavras, justificativas risíveis (porquanto caricatas), discursos vazios e previsões que ofendem a inteligência e a sensibilidade dos legítimos esmeraldinos zanzam acintosos, aqui e acolá, na tentativa de camuflarem verdades.

Choro por ti, meu Goiás, pela sanha e sadismo de teus algozes, pelos desatinos que te desfiguram o futuro, pelas incertezas que te esgarçam as asas e te abortam os sonhos. Agonizas sem dignidade, sem altivez, sem reação. Infelizmente, és cria deste tempo sombrio, carente de esperanças e de tramontana e repleto de poderio desenfreado.

Choro por ti, VERDÃO, pela pasmaceira que envolveu tua jornada na Série B, série que, sequer, é tua. Choro pela iminência do abismo, pelo fracasso que quase já dobra a esquina. Todavia, garanto-te: aos que foram alijados de tua casa, sobrou indignação. Por certo, pensam os adeptos da filosofia dos tiranos: banidos, eles não poderão combater o autoritarismo. Estão enganados. Injuriados, sim. Acovardados, nunca! Alertas, sempre! É essa a posição dos que te amam e querem recuperar tua dignidade e teu prestígio.

Para mim, repito, futebol é arte, é poesia tecida com os pés e burilada com a cabeça, com as mãos, com o peito. Futebol é estado de emoção, de comoção, de paixão. É o encanto do drible, a fascinação do passe, a trajetória da bola rumo ao Olimpo: o gol. É a dor angustiada do goleiro em seu instante ápice de solidão (Harlei e Rogério Ceni, referências na categoria, bem o sabem). Futebol é a alma, feito pássaro, a planar numa tarde dourada, numa noite azul, ou a cobrejar pelo gramado em forma de bola. Futebol é conjunção de amor e dor. É cultuar um time e sofrer por ele. É rito de glórias e de derrocadas. Que o diga meu Goiás Esporte Clube, o VERDÃO da Serra, desgraçadamente, à beira do despenhadeiro!

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Diário da Manhã - Dia 25/9/11

VOO TUMULTUADO

Lêda Selma

João Perpétuo, o “Esquecido de Deus”, após finar-se de morte por susto, durante um pesadelo medonho, tomou o rumo do além. O voo, cheio de sacolejos e sobressaltos, vez por outra, parecia enveredar-se por escuridões assombrosas e suspeitas, entremeadas por vultos rubentes e aterrorizadores. E Perpétuo, arrepiado de medo, tentava deixar pelo caminho algum pecado, porventura esquecido na matula, pois não queria atrair o faro do tal raboso do tridente. Assim, baldear por aqueles domínios infernais, nem para pedir informação! E, em boa hora, lembrou-se do dito terreno “sua alma sua palma” e achou melhor largar terra às favas, fugir, desabalar em correria, antes que se asfixiasse com o enxofre já recendente.

Uma parada breve pelo limbo, para visitar alminhas pagãs; uma escala rápida no purgatório, para descansar e purificar a alma centenária, e todo cuidado para não passar pelas cercanias diabólicas do horrendo caldeirão. Estratégia interessante. Assim, estancaria o medo, reabasteceria a coragem e se prepararia para o inadiável reencontro com aquela que o enviuvou. E só de pensar nisso, sentia vontade de se perder pelo caminho... Uma pergunta cutucoou-lhe: “Será que a finada teria conhecimento de suas frutificantes safadezas carnais, ainda no calor da viuvez? Duas estrelas solitárias piscaram lá no fundo da imensidão de breu...

Entre uma dúvida e um assombro, Perpétuo percebeu-se escoltado pelas duas que, feito lanternas, apareciam vaga-lumeantes, como a indicar-lhe o melhor caminho. Então, tudo pareceu endireitar-se. Pareceu... Perpétuo nem desconfiou que as tais estrelas nada mais eram que os olhos mexeriqueiros e vorazes da falecida Saudosina. Pois é, a alma da mulher, em permanente desassossego, queria que a do marido apeasse lá por aquelas bandas, o mais depressa possível, para o ansiado acerto: “Traidor! Minha presença mal virou as costas e o salafrário já estava se lambuzando nas suculências roliças daquelas vaquetas usurpadoras de viúvo alheio. Maldito! Foi afogar o pranto exatamente nas profundezas madalênicas daquelas decaídas com cara de anjo...”.

Mais um túnel embreado e estreito. E de suas entranhas, um assustador rilhar de dentes e de tridentes. Odores insuportáveis. Perpétuo apavorou-se. Estava em queda livre. “Socorro! Minha alma vai espatifar-se... ai, ai, ai...! Ó Santo protetor dos viúvos devassos, amparai-me!”. E, de novo, as duas estrelas ali, bem visíveis, e a mesma sensação de alívio a afugentar o desespero de “Esquecido de Deus”, ou melhor, de sua alma tão bem lembrada pela de Saudosina. Outro instante de trégua. Lá no longe, um caminho alargado e um fiapinho de luz. “Agradecido, meu santo, agradecido! Acho que encontrei o caminho”. E encontrou. Não o caminho, mas Saudosina, isto é, a voz estridente de Saudosina: “Hã, quem é morto sempre aparece, hem, seu viúvo alegre, seu tarado de duas biscas?!”.

Perpétuo, em pânico, reconheceu o chiado raivoso da mulher. E foi rápido: “Olhe, minha velha, não aguentei a solidão e a saudade e vim pra junto de sua alma buscar aconchego pra minha. De tanto pedir, o Pai me atendeu, sabedor que era de meu desejo rejuntar os trapinhos de nossas almas.”. Aí, sim, Saudosina furibundeou de vez: “Tarado dos infernos, ainda ousa pronunciar os nomes daquelas ganças devoradoras de viúvo, aquelas prostiputas, as tais Solidão e Saudade, seu promíscuo?”.

Nova queda livre... E a iminência de um desastroso impacto. Ainda atarantado, Perpétuo vê dois vultos brancos, asados e esvoaçantes, envolvê-lo. Aquieta-se. Tocam-se. E, entre um cochicho e outro, a subida. E os gritos. “Estou salvo! Que bênção! Hum... a subida ficou mais macia, cheirosa... Duas anjas lindas, carinhosas, insinuantes... Tive uma ideia, irra: um chamego com essas belezuras, num cantinho qualquer do infinito, só para lavar minha alma, e tirar a pobre da miséria, por que não?! Até o encontro com a falecida, dá para conhecer as peculiaridades angelicais e secretas das duas, ora se dá...! Bondade demais, benza Deus! Caridade, pra que te quero?!”.

Com a alma em ponto de bala, Saudosina, que espreitava Perpétuo, indignou-se de vez: “Não é que o infiel já está de olho nas belas anjas, Bondade e Caridade?! Vou cortar as asas das duas, e ele que tome o rumo do caldeirão!”.