UM PATUSCO SACRISTÃO
Lêda Selma
Certo jovem, após realizar seu sonho de atuar como sacristão, passou uma chuva na igreja. Para estabelecer um pouco mais de intimidade com São Jorge, vistoriou o santo, mediu-lhe a espada e, nesse bole, rebole, assustou-se com um cofrinho que parecia esconder-se atrás da imagem.
– Espertinho, hem, Jorjão, escondendo a abastança, né?! E eu precisando tanto dessa gaita... Um empréstimo... e por que não? Sim, só um empréstimo. Juro pela alma de minha ex-quase-sogra, a nem um pouco saudosa dona Valentina, mãe da Alma (sempre estranhei este nome, cruzes! Até lhe dei um apelido: Coração), moça dotada de formosura e de virgindade, por quem tive um xodó de passagem. Mas que conversório é este, homem, vamos à facada, isto é, à espadada, não, não, ao empréstimo. O senhor me favorece com sua bondade e eu lhe retribuo com generosidade: uma espada nova – por conta dos juros – quando lhe devolver a mufunfa. Grato pelo consentimento, sim, quem cala... Sua bênção, sua licença e agradecido pelo empréstimo!
Tempos depois, numa noite de pele suada, o sacristão, tombado não só como patrimônio da cachaça, ouviu batidas na porta. E sentiu arrepios:
– Abra a porta, homem, sou eu, Alma, lembra? A Alma, da finada dona Valentina, já esqueceu?
“Danou-se: é ela, a injuriada alma da maldita, por quem jurei e, de propósito, nomeei minha avalista. Não abro e é nunca o ferrolho da porta – decidiu, de si para si, tropegando nas raquíticas palavras. Passado o susto, encorajou-se, e decidiu enfrentar o suposto fantasma:
– Não me lembro de nada. Vai-te embora, alma desgarrada! E que o diabo te leve. Meu negócio é com São Jorge, e não aceito procurador!
Passados alguns dias, um antigo vizinho, de nome Jorge, resolveu procurar Sacristiano, pois, semanas antes, haviam combinado matar um porco, daqueles engordados à meia:
– Ô de dentro, é o Jorge. Tô aqui com o facão em punho pra matar...
“Pronto, minha alma foi de vez pro brejo! Hum! que cheiro é esse... Será de alma esturricada?! Jurado de morte é o que tô. E o santo resolveu se abalar até aqui pra adiantar o serviço, recebendo, pessoalmente e com sangue, a maldita dívida” – deduziu, baixinho, enquanto se recompunha do tremendo susto. E tentou enrolar o lá de fora:
– Se amofine não, meu santo!. Olhe, volte pro sossego do seu altar que amanhã, nem que seja montado no rabo do primeiro sol, chego com o dinheiro. Agora, vá cuidar dos pedidos dos seus devotos, vá!
Preocupado com o sumiço do sacristão, mais para sacripanta, o vigário pediu a um amigo do procurado que descobrisse o sucedido.
– Sacristiano, ocê taí, sujeito? Aqui é o Jesus...
“Agora, sim, tô deveras perdido, e sem chance de salvação! O próprio Jesus, em pessoa e voz, me cobrando a dívida. Já sinto em definitivo minha alma churrascada no inferno! Mas, perdido por um...” – pensou com voz rateada. O jeito, ganhar tempo. Então, foi incisivo:
– Olá, Senhor Jesus, vossa bênção! Olhe, não vou abrir a porta porque a noite tá danada de feia, raivosa e traiçoeira, não convém lhe dar moleza, né? Vai que um raio mais atrevido se aproveita de meu descuido... O amigo é santo, tá protegido, mas esse pecador aqui, não. Mesmo assim, é melhor se recolher. Nada de confiar demais no próprio taco, pois os raios não respeitam ninguém, pergunte a seu Pai! Então, assunte, meu irmão, volte pros seus aposentos no paraíso, que, pelo andar das cobranças, não demora, a gente se topa por aquelas bandas. Já tô quase de posse da passagem... Agorinha mesmo, se bobeio, tinha embarcado, e o senhor já teria notícias minhas. Bastava eu ter deixado o santo – São Jorge, meu credor – entrar, com aquela enorme espada, que, a estas horas, já tava a caminho do além, todo espadaçado. Vou lhe propor um trato, Jesus: já que tô jurado de morte, pago a dívida diretamente pro senhor, sim, mas só quando chegar lá, combinado? Diga isso ao Jorjão.
Um 2012 de muitas renovações, muitos sonhos robustos e emoções em profusão, leitor.
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