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sábado, 24 de março de 2012

Diário da Manhã - 25/3/2012

AMBIGUIDADES

Lêda Selma

A língua portuguesa (especialmente, a “brasileira”) é rica em apelidos. Tanto para nomes próprios quanto para comuns. E o pior: a maioria nenhuma relação possui com o original. Na Bahia, então... Laurinda vira Lousinha; Maria, Lica; Olga, Pequena; Emília, Bida; Justina, Sussu; Esmerilda, Catita; Escolástica, Tatá; Tomasina, Totote; Zenóbio, Sinhô; Almerinda, Nana... Para moça desdonzelada por vontade das quenturas íntimas, um acervo e tanto de significados: deu um mau passo, perdida, desonrada, sem lacre, bulida... E as que se firmaram no ofício da ‘perdição’: quenga, mulher corrida, mulher de rebuço, decaída, ervoeira, ambulatriz...

Outras preciosidades dão um certo charme à famosa cachaça, muito conhecida como pinga e, também, como aguardente ou branquinha: ventania, fôlego-quente, matusquela, tiririca, aço, água-dura, água-bruta, água-de-briga, baronesa, tiúba, sinhazinha, arromba-peito, quebra-goela, gafanhoto, brutamontes, donzela, tasca-aqui, lambisgoia, reco-reco, abstinência, quero-colo, xixi-de-cobra, samba-enredo, lusco-fusco...

Apelidos, codinomes, alcunhas, pseudônimos, cognomes, criptônimos... não importa. O certo é que, às vezes, causam tremendas confusões e ambiguidades, como no caso de determinadas bancárias, muitas delas “letradas”, algumas, incautas, outras, místicas e, em comum, adeptas ou fanáticas por cartomancia, quiromancia, numerologia, tarologia e tantas outras enganologias (os demais adeptos perdoem-me o ceticismo).

Pois não é que as tais codificaram umas fugidas suspeitas, em pleno horário de serviço, e acabaram arranjando a maior confusão? E, justo, com o austero gerente do banco, homem de aparência mal-ajambrada, rosto sem riso. voz áspera e inquisidora:

– Cadê a Inocência?

– Foi ao cardiologista.

– Então, chame a Vivalda.

– Saiu um pouquinho mais cedo para ir ao cardiologista.

– Peça à Credulina para vir à minha sala.

– Impossível! Ela marcou horário com o cardiologista.

Preocupado com tamanha incidência de visitas ao tal especialista, o jeito, decidiu o gerente, investigar o problema responsável pela evasão das bancárias durante o expediente. Para tanto, convocou, com a urgência aparentemente requerida, o cardiologista do banco para um checape nas funcionárias, já aventando algumas hipotéticas causas: excesso de trabalho, preocupações familiares, problemas financeiros, estresse, baixo salário, pressão do chefe, arrelias conjugais...

Estetoscópio, pra que te quero...?! O médico começou a examinar as pacientes, auscultando-as. Uma, duas, três... e nem o menor indício de problema. Surpresa geral: em nenhuma das checapeadas detectou-se qualquer anomalia cardíaca. Nem um soprinho básico, nada. Nada...?! E a taquicardia? Taquicardia até intrigante. O coração De Inocência, de Vivalda e Credulina, acelerado que nem velocista em dia de competição, ou vento em rota de fuga, ribombava. Lívidas e trêmulas, as examinadas aguardavam o veredito médico.

Desentendidos, o gerente e o doutor quiseram saber o que estava acontecendo, interpelando-as. Quiseram. E ficaram querendo, roídos pela curiosidade, pois as ‘taquicárdicas’ não ousaram destravar a explicação, nem desatar o pacto silencioso que lhes impunha cumplicidade. O coração, entalado na garganta, ou na boca, em contínuo saio não saio, por certo, o maior impedimento para o segredo escapulir.

Mas, na surdina, e sob discrição, uma olheira contumaz rompeu o silêncio quase sepulcral, e decifrou o impasse.

Bem, como não assumi compromisso de guardar segredo, sinto-me livre para espalhar o acontecido: as crédulas irrecuperáveis deram aos tais ‘bem dotados de espírito’, também conhecidos como videntes, cartomantes, tarólogos (às vezes, charlatões) o apelido-disfarce de ‘cardiologista’. Por precaução e, mais ainda, por esperteza, claro! Principalmente, porque as saídas para as “consultas” davam-se à hora do trabalho. Portanto, algumas das taquicardias detectadas, durante o exame, estavam mais do que esclarecidas. E o medo de serem descobertas e apanhadas com as calças, ou melhor, com as cartas na mão?

Momento poético:

O medo me induz ao caos,
o sonho, à ousadia.
No medo, guardo silêncios;
no sonho, pecados.
No fosso, minhas sobras.

Um comentário:

  1. Querida prima e poetisa Lêda Selma, abri o dmdigital e fui direto ao DMRevista, em busca do seu texto Ambiguidade, tema que me desperta interesse ímpar. Ah, como desperta...

    Para minha surpresa, Ambiguidades estava na página 7, esprimidinho abaixo de matéria do Vila Nova.

    Dei risadas, gargalhei, voltei aos bons tempos do Mobral, quando a gente "matava o trabalho" para ir na ledera de sorte, dizendo ir para o Cardiologista. Quando a Coordenadora descobriu nosso macete, aliou-se a nós. Afinal, ela era caritó e andava em busca de um par. Nem foi preciso ir longe. Encontrou o par dentro do carro oficial. Casou-se com o motorista, na década de 90, e vivem felizes até hoje.

    Quanto ao momento poético, nego-me a lhe dizer onde guardo os meus guardados.

    Ha! Ha! Ha!

    Bjs,

    Iracema

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