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sábado, 25 de fevereiro de 2012

Diário da Manhã - 26/2/2012

SEM SERVENTIA

Lêda Selma


Inacreditável! Uma leitora brasileira, que se diz ‘rabiscadora de poesia nas horas vagas’, no fulgor de seus 93 anos, residente no Texas, e-mailizou-me: “...Sou sua leitora assídua, e, quando morava em Ribeirão Preto, li, já faz um bom tempo, no DM, um texto seu bem engraçado que falava de uma esposa desejosa de botar para escanteio o marido descumpridor das tarefas conjugais. Integro um grupo de senhoras e queria que elas lessem o texto, pois sei que se divertirão, mas não o encontrei na internet. Como encontrá-lo?”. – Aqui, dona Mariana. Republico-o em sua homenagem:

Agora é lei. E é para valer...! Ai do cônjuge que não desempenhar as funções para as quais se habilitou no famoso “Dia do Sim”! Maridos, cuidem-se: corpo mole, nem pensar! E ai da mulher que fraudar seu ciclo mensal em honra e glória de um premeditado descanso! Pois é, lei seca ou do menor esforço, no âmbito conjugal, coisa do passado. Portanto, ao desanimado ou preguiçoso, flagrado em negligência, a rigidez da lei.

Sabedora disso, certa esposa desditosa resolveu estrear a lei e buscar seus direitos. Pensou no Juizado de Pequenas Causas, todavia, desistiu: “Minha causa é enorme e precisa de um juizado maior, de grandes causas”. No entanto, logo soube que o tal mudou de nome: Juizado Especial e, então, animou-se ainda mais.

– É, meritíssima, o folgado, quer dizer, o arremedo de marido, no duro, é pura moleza. Pra ele, casamento é só mesmo o do sono com o travesseiro. Aquele outro, o prometido, jurado e sacramentado pelo padre, agora, só na lembrança. E, enquanto o espírito se ajeita com alguma distração, o pobre do corpo padece! A interessada, então, valha-me Deus!

– A senhora quer dizer que seu marido não tem marcado presença no leito conjugal?

– Digo, redigo e tredigo. E mais: vim denunciar o molenga, o sovina, o negligenciador do ofício noturno. O ridico só tem mesmo marcado é ausência. Presença? Só da soneira e do ronco.

– E a senhora já tentou conversar com o faltoso, isto é, com o marido?

– Pra mais de muitas vezes, meritíssima, bem pra mais...

– Talvez, uma estratégia nova, um temperinho diferente...

– Ah! tenho feito de um tudo, pode crer. Temperinho? Hum, temperão! Com óleo de dendê, malagueta e tudo o mais. E os disfarces então? Já me disfarcei de donzela, encarnei a vadia, empinei as protuberâncias, inventei remelexos e tremelexos e, mesmo assim, o maldito, o tal marido sem serventia, fugiu da lida. Feito cruz-credo fugindo de água-benta ou político, de eleitor, depois da eleição.

– Se a senhora está dizendo isso, e com tantas ilustrações, é sinal de que a situação está mesmo delicada. Bem, e a que pode ser atribuído tamanho desinteresse?

– A várias incompatibilidades: de desejos, de horário, de disposição...

– E quais as suas pretensões, com relação ao caso?

– Terceirizar os serviços do inativo. Sim senhora, abrir uma franquia. E tudo se resolverá: o enfastiado se refestela na moleza, o futuro operante mostra sua serventia e eu me livro da precisão. Assim, fica até mais em conta para o infrator, pois nem preciso apelar para uma indenização por danos conjugais.

– Melhor usar o bom senso: um diálogo franco, uma viagem a dois, um terapeuta de casais...

E, com cara de pouco marido, a juíza, após um relampejar de pensamento maroto, desveste o rosto da tradicional carranca e regozija-se num monólogo interior: “Meu marido, há muito, não tem me frequentado... Terceirizar os serviços do inativo... bastante pertinente.

E, então, com certo cinismo, conclui maliciosamente: “Se a queixosa quiser ouvir meus conselhos, ficar com o bom senso, com o diálogo ou com o terapeuta de casais que fique, porque eu, ah!, vou é tratar da tal terceirização. Uma franquia... Hum... e por que não?!

Momento poético:

... Já não me basta
o amor em combustão,
se tenho o sonho,
mas perdi a estrela.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Diário da Manhã - 19/2/2012

HAJA PACIÊNCIA!

Lêda Selma

Estava, mais uma vez, em uma sala de espera de consultório médico. Não que eu seja hipocondríaca, ou que tenha a saúde frágil. Não, não, apenas, mais uma visita de rotina ao médico. A propósito, hipocondríaca é certa amiga, daquelas de infância. Deus me aumente o estoque de tolerância!, a cada bate-papo com a tal que, diga-se, é de amargar! Por falar nisso, seu fígado é o culpado, acusa-o sempre.

Bom, já que abri parênteses, um exemplo da hipocondria da moça: desesperada, ligou-me, com jeito de despedida, certa noite. Se mal entendi, despedida eterna. Ah! o terceirizador de sua partida, o sangue. Engastalhado na urina, indicava-lhe estado terminal, garantiu-me. Tentei acalmá-la. Vã tentativa. “Estou desgraçada! Só espero o resultado do exame para selar, de vez, meu destino: a morte!”. Dia seguinte, novo telefonema, e a voz toda adocicada pelo alívio: “Ufa, não será desta vez, amiga! Pelo menos, por enquanto, não arredarei pé da vida. Não era sangue e sim, excesso de beterraba e de amora, acho que exagerei na ingestão de ambas!”.

De volta à sala de espera do consultório médico. Bem, de repente, como habitual, a intimidade entre desconhecidos faz-se a tônica da espera que, não raro, se arrasta, qual lesma claudicante, pelos corredores das impaciências dos pacientes. E novas bestagens enchem o espaço de inutilidades:

– Estou ‘exáustica’. Andei o dia inteiro atrás do meu ‘adevogado’ pra pegar sua ‘rúbrica’ e não encontrei o sumido. É por isso que coisa ‘gratuíta de graça’ não presta – pavoneava, com voz empostada e com gosto de esnobismo, uma mulher rechonchuda, de seios graúdos e balouçantes, prestes a escapulirem da blusa, boca enorme e excessivamente vazia. Não de palavras, claro!

Alguém se interessou pelo problema da madama, e foi aí que a fulana esbaldou-se na falação:

– Estou em ‘procéssico’ de divórcio. Meu marido arrumou uma ‘concubínica’ e o jeito foi tomar providências. Por isso, ‘instituí’ um ‘jurístico’ pra tomar conta do caso. Mas, haja ‘paciêncica’!

HAJA! – gritei interiormente, e, em súplia: Senhor protetor dos ouvidos aviltados, socorro! Esses ‘proparoxítonos’ forjados detonaram-me o humor e os ouvidos; melhor ser surda que ouvir asnuras! Leda fantasia, pois, enquanto audição possuísse, ouviria besteiras de variados calibres, a torto e a direito.

De outra feita, em um daqueles muitos recreios tão característicos do serviço público, ouvi de uma nortista muito engraçada, crítica e debochada (fazia troça até de si), minha colega de sala, alvo constante de suas próprias gozações:

– Um dia, li numa revista a palavra pérgula e achei chiquérrima. Copiei a maravilha pra não esquecer e, então, pensei: vou lascar esta joia numa conversa com letrados. Jamais consegui. Por mais que eu me esforçasse. Parecia até coisa feita, gente. Eu, doidinha pra exibir meu vernáculo, as chances aparecendo e, na hora H, ficava em dúvida e não me lembrava direito da maldita. Nunca sabia se falava na pústula, na pérgula ou no prostíbulo da piscina.

Momento poético:

Esta clareira aqui, sob o peito,
tem vazios, valas, lonjuras
e fósseis de amores tardios.

Nem mais ouço os alaridos
de meus sonhos chamuscados
sobre as peliças de outrora.

Mas sinto o rodopio do vento
grimpar ladeiras e flancos,
com a saudade nos ombros.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Diário da Manhã - 12/2/2012

E QUE VIZINHA...

Lêda Selma

Nunca morei em fazenda, aliás, nem mesmo em cidade do interior, apesar de interiorana. A bem da verdade, interiorana, apenas, de nascimento. Vim para Goiânia e fiquei. Para assentar pouso definitivo: enraizar-me, florescer e frutificar.

Pois é, embora não tenha desfrutado, jamais, de qualquer intimidade rural, sempre ouvi histórias sobre o companheirismo e a camaradagem naquelas antigas fazendas, onde quase todos eram compadres, no mínimo, duas vezes. A do meu avô materno (bem entendido, uma delas), a Boa Sorte, era ponto de chegada e de ficada de amigos e forasteiros, recebidos, sempre, com muita festança e hospitalidade.

Os vizinhos, então, eram “de casa” e, portanto, ai de quem usasse de cerimônia. Assim, o troca-troca de gentilezas verbais, gestuais e comestívas, praticamente, ritualística. E não era rara, mesmo naquele tempo em que o fio da barba selava o combinado pela palavra, a figura do espertinho ou, até mesmo, do aproveitador.

Nhá Piedade, senhora de fartas e balofas carnes, rechonchudos e balançantes seios, viúva convicta de nhô Simplício, sua meeira na pouca terra, nos parcos recursos e nos muitos filhos, destacava-se pela perspicácia e pelo espírito arrojado. Senão para o trabalho, pelo menos, para garantir, à sua moda e à custa das amigas e das comadres, o sustento da prole (a exemplo das ancas desengonçadas, nem um pouco modesta).

– Bons-dias, siá, vim fazer uma visitinha rápida, só pra não desacostumar o costume, sabe? E que Deus seja louvado!

– Seja, comadre, seja! E também que Ele tenha piedade de mim, ou melhor, de nós, no caso de algum carecimento; melhor um pedido preventivo que um remediativo, não é mesmo?

– Eita comadre, sempre cautelosa! Pois é, pedir nunca é demais. E por falar nisso, dei uma espiada de soslaio na despensa da comadre e, Deus seja louvado!, uma abundância de inchar a boca... Aquela conserva ali, então, hum...!, tá no maior desfrute com a compota. E as duas safadinhas não param de olhar pra mim, se insinuando, me instigando a modestas pretensões... A comadre não vai se importar se eu, me valendo da insistência de ambas, e aproveitando o assunto sobre pedidos, fizer o meu, pois vai?

A visitada já conhecia, de velho, a estratégia da visitante: mal chegava, despachava os olhos para a lida, ou seja, para bisbilhotarem tudo; vistoria completa. Depois, era só lascar, de uma tacada só, o pedido. Assim, tornava-se impossível qualquer recusa, pois o desejado já havia sido, previamente, localizado e apontado por ela; requisitá-lo, portanto, apenas, o golpe final.

Dessa forma, nhá Piedade, de visita em visita, assegurava a sobrevivência e o crescimento dos filhos. Um dia aqui, outro mais adiante... e, de pedido em pedido, a matrona enchia o saco, a paciência dos vizinhos e a pança dos meninos.

– Hum, que cheiro gostoso de café torrado, comadre Malvina! E aquelas fornalhas de biscoito, ali no forno, doidinhae pra eu levar uma delas pros meus bacuris famintos...?! Ah! e quanto pequi acolá, hem?! No pontinho, só esperando eu tirar os pobres das cascas e dar a eles o destino das panelas.

– Deus seja louvado, comadre Generosa...

– Amém, comadre!

– A louvação é praquele pilão ali, ó, cheio de paçoca, comadre! Me dê cá um bocado, me dê.

– Escute aqui, mulher pidona, se atipe, ora! A gente dá isso, a comadre quer aquilo. Só falta lhe dar o sorriso e a senhora querer os dentes; lhe dar a saia e a comadre querer as búndegas, só pra descansar as suas!

Momento poético:

Silêncio é vastidão do nada
e poesia, um colibri verdourado,
com hálito de primavera,
a polinizar desertos e escuridões.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Diário da Manhã - 5/2/2012

APOLOGIA AO PRESENTE

Lêda Selma

Os que se convenceram de que o ato de presentear é algo especial e o de receber, delicioso, pediram-me que republicasse minha apologia ao presente (alguns a desconhecem). Estávamos em um aniversário, momento por demais oportuno para conclusão honestamente correta, sem os ranços do etiquetamente correto. O texto diz:

Além de alegrar, encantar, emocionar, o ato de se oferecer um presente, mimo, lembrancinha a alguém cria um elo mágico entre presenteador e presenteado. Por quê? Ora, pelo motivo mais simples e terno que reveste aquele sentimento, que até faz cócegas, de sabermos que alguém, por alguns momentos, dedicou-nos parte de seu tempo, buscou fazer-nos um agrado ao colocar carinho e sensibilidade em um pequeno (e tão enorme!) gesto: deixar para o coração a escolha do presente.

Algo de primeiríssima necessidade, o presente. Pessoalmente, considero-o mais que imprescindível. Aliás, nem posso imaginar um aniversário, Natal, Dia das Mães, Dia dos Namorados... órfãos de presentes. E não me venham com o discurso (nem um pouco romântico e tão carregado de falsa razão) do “apelo comercial”. E o apelo emocional e afetivo, não contam?! É certo que o comércio fatura. Mas o presenteado também.

Não acredito na veracidade do chavão “Não precisava se preocupar com o presente, bastava a presença!”. Soa falso. Uma heresia, ou melhor, um sacrilégio (os dois, pronto!). A presença, sem dúvida, é fundamental. O presente também. Assim, não há por que se separar um casal tão bonito, elegante, da mais alta linhagem, semântica e socialmente harmonioso: presente e presença.

“Você foi se preocupar com presente!? Bastava só a lembrança!”. Lembrança... Ah! sim, o apelido do presente! Por falar na tal, que ninguém deixe de se preocupar em me oferecer um presente. Faço conta, e muito, dessa preocupação. E não me venha com “não repare eu não ter trazido uma lembrancinha...” Reparo. E como!

Sempre considerei esteticamente feias as mãos que chegam a um aniversário desacompanhadas. Solidão constrangedora! Uma entrada nem um pouco triunfal! Presença sem presente... hum, tão sem-graça! Mesmo recebida com aparente naturalidade pela gentil pseudoconivência do despresenteado.

Não abro mão de um presente, nem avento a mais remota possibilidade de não o receber. E não só em datas especiais (a surpresa tem seu lugar). E nunca escondo a frustração quando ouço: “Depois, trago sua lembrancinha. Não tive tempo para comprá-la...”. Tempo? Um ano é pouco? Sim, porque aniversário é data fixa, ora! Imperdoável negligência desdobrada em prejuízo. Além do mais, se fossem levados a sério: “Prevenir é melhor que remediar” ou “Não deixe para amanhã o que se pode fazer hoje”, o potencial presenteado não sofreria tamanha decepção, nem o presenteador daria vexame.

Adoro o exercício de abrir caixas e pacotes: emocionante! O objeto ali, a olhar-me curioso: às vezes, malicioso, por outras, cúmplice; feliz e agradecido por eu libertá-lo da inércia dos papéis, fitas, laços, enfim, da enfadonha prisão. Ouço até tilintar de estrelas, como se em plena efusão do amor, ao despertar cada presente e senti-lo todo meu! Tal qual o eclodir de carícias, em pleno voo da poesia, toque sutil a buscar pouso na alma do verso recém-nascido. Uma sensação fantástica desembrulhá-lo, descobrir-lhe a essência e senti-lo em sua inteireza. O mesmo que liberar a criança, que se escondeu aqui dentro, por medo de crescer, para se fartar de chocolate (no meu caso, Sonho de Valsa). E qualquer um pode saborear esse instante. Basta cultivar o dom do encantamento e repudiar o ceticismo sisudo dos adultos amadurecidos à força, e que, em nome do adultamente correto, catalogam o presente como simples “lembrança material”, desprovida de importância. Não sabem eles que, ao dar a luz ao mais modesto presente, o gesto opera o milagre da materialização do afeto e do carinho, o que faz espocar a emoção, e exorciza a indiferença.

Sintam-se à vontade comigo, pois sei admirar e bem receber essa dupla de sucesso: Sua Majestade, o presente, e Sua Alteza, a presença! Belo casal! E atenção: o que a delicadeza uniu, não o separe a insensibilidade. Amém!

Momento poético:

Prefiro o silêncio das dores guardadas
e a solidão das saudades envelhecidas
ao rastro indolor do nada.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

POEMA

INTEIREZA DAS METADES

Lêda Selma

“... E que a minha loucura seja perdoada, porque metade de mim é amor, e a outra metade também.” – Oswaldo Montenegro

Tenho duas metades conflitantes:
uma é inquietaude,
a outra, solidão.

Uma é desassossego,
a outra, calmaria.

Tenho duas metades contrastantes:
a que sossega dores,
a que instila lembranças.

Uma conduz-me a delírios,
a outra, a saudades.

Tenho duas metades piedosas:
uma é ataúde,
a outra, liberdade.

Uma é espólio de medos,
a outra, covil de desejos.

Tenho duas metades intrigantes:
uma é reduto de gritos,
a outra, motim de prazeres.

Uma é ida sem caminho,
a outra, volta com atalho.

Tenho duas metades poderosas:
uma reza feito santa,
a outra, serpente, profana.

Uma é casta, quase insana,
a outra, fugaz e devassa.

Tenho duas metades tortas:
uma enlouquece e amedronta,
a outra persegue e abate.

Uma é fantasma,
a outra, impiedade.

Tenho duas metades implacáveis:
uma é morte,
a outra, tempo.

Uma satiriza verdades,
a outra martiriza sonhos.

Tenho duas metades sutis:
uma é rastos de lua,
a outra, restos de chuva.

Uma diz o que sinto,
a outra, o que minto.

Tenho duas metades perigosas:
uma recende amor,
a outra provoca a vida.