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sábado, 22 de janeiro de 2011

DIÁRIO DA MANHÃ - 22/1/11

E QUE CALOTE, CRUZES!

Lêda Selma

Seu Antônio tinha tudo para ser um grande escritor, um ficcionista de mão, isto é, de mente cheia, ou, no mínimo, exímio contador de casos, tamanho seu acervo imaginário. Cada um... daqueles de arrepiar até cabelos inexistentes. Se houvesse plateia, então, aí, a coisa se avolumava, beirando o surreal.
Por mais de vezes, já recontei a história do tal relógio de bolso que, perdido à beira de uma lagoa, durante animada pescaria, apareceu, vinte anos depois, embalado pelo antigo tique-taque, tique-taque, tique-taque. Naturalmente, a pergunta era inevitável: apareceu onde? Segundo seu Antônio, que jurava ser a mais genuína verdade, suspenso num galho do pé de umbu, que ele plantara à época, e ficara enorme. Detalhe: naquele tempo, idos de 1930, dava-se corda aos relógios, não? Portanto, só mesmo um milagre para mantê-lo em funcionamento por duas décadas. E ai de quem duvidasse de seu Antônio Soares...
No fulgor da juventude, mesmo aos 90 anos, com um pratinho de tira-gosto, de preferência, torresmo, e um copo com a tal, dizia ele, “branquela manhosa e fogosa”, sobre a mesa do boteco (a inseparável cachaça, “remédio eficiente para qualquer mal”, garantia), rodeado de amigos, esbaldava-se na alegria e na criatividade. Pela manhã e à tarde, que fique bem claro! Eta, sogrão!
Mestre do exagero, não se fazia de suplicado: reabria o arquivo de recordações, espichava a memória, acionava-lhe as asas e, sem dispensar o caráter dramático de seus causos, impingia-lhes forte dose de emoção:
– Já sofri muito na vida, gente!. Durante 25 anos, padeci com crises seguidas de maleita, toda semana, e uma mais forte que a outra; nem sei como não morri! Aos 32, sarampo dos bravos, virado em pneumonia e revirado em asma, outro sofrimento! E a caxumba, então? A minha não desceu, meus nove filhos são a prova disso. Uma maldosidade atrás da outra, Bom Jesus da Lapa! Mas da maleita me livrei, ah! se me livrei! Por causa duma promessa que fiz, e que cumpri por mais de trinta anos.
– Promessa, seu Antônio? Melhor, negociação com os santos...
– Foi o jeito. Um rosário, todos os dias, eu rezava, ajoelhado sobre milhos. Promessa pro resto da vida. E promessa é promessa, coisa séria demais!
– Rosário?! Não seria um terço? – escapou-me, capciosa, a pergunta.
– Terço?! Que terço, moça?! Terço não dava conta de resolver meu problema, não, oxente! E santo gosta lá de ser embromado? Foi rosário mesmo, uma troca justa com os santos. Deus me livre de brincar com essas coisas! Eu sempre cumpri minhas obrigações com Ele e com seus subalternos; nunca caloteei um deles, nunca! Promessa é trato sério, e os santos contam com a palavra e a pontualidade da gente, senão, o crédito acaba, e o sujeito fica com o nome sujo, um péssimo investimento.
– E então, provoquei, depois de tanta reza, o sofrimento acabou?
– Acabou. Graças aos meus protetores, tanto o Superior como os subordinados, além do meu empenho em cumprir o combinado.
Bem, o velho sorriso, sintomático e malicioso, anunciava que ainda havia o merecido desfecho para a história, cuja veracidade, bem, deixa pra lá! E seu Antônio concluiu:
– Vou confessar, verdade seja dita: olhe, não cumpri a promessa por inteiro não. Quero dizer, de própria voz e de próprios joelhos. Estava ficando cansado, velho... os santos haveriam de me entender.
– E como o senhor resolveu o impasse? – insisti, curiosa.
– Ah! paguei uma amiga antiga, lá da Bahia, pra cumprir a promessa, até o fim, em meu nome! Aí, os santos não poderão reclamar de mim. Se reclamarem, é lá com ela, a responsável pela dívida
É, o velho Antônio Soares, que subiu à Instância Superior aos 92 anos, deu o maior calote nos santos!

sábado, 15 de janeiro de 2011

DIÁRIO DA MANHÃ - 15/1/11

ALÉM DO SUSTO REMORSO

Lêda Selma



– Isso foi há muito tempo. Nunca passei um apuro tão grande. Escapei por pouco. No momento, só consegui invocar Nossa Senhora dos Apurados, santa que inventei no auge do desespero. E não é que a bendita me valeu?! Os maridos afeitos a peraltices descartáveis, aquelas pra espantar o marasmo da rotina sob os lençóis domésticos, podem confiar na inventada, pois ela tem o maior prestígio na Instância Superior.
– Mas, e então? – atalha um dos ouvintes.
– Ah! sim: estava eu numa daquelas estripulias extraconjugais, daquelas com pinta de reativar até vulcão inativo, com uma louraça de mão, voz e lábios venenosos, corpo apetitoso, um mulheraço de dilatar as pupilas de qualquer cego, quando...
– Que mal lhe pergunte, estava o amigo onde?
– Ora, num motel, isto é, adentrando o próprio. Hum... mas já sentia os efeitos antecipados dos momentos vindouros.
– E daí?
– Daí que, súbito, divisei minha esposa, com aquela panca de mulher elegante, cheia de vida, a bordo de seu chevette vermelho, acompanhada de um rapaz bem-ajambrado, alto, fortão, e deduzi: o tal ajudante, escolhido a dedo, para cuidar de seu material de trabalho.
– Está explicado o susto... – interferiu um outro.
– Pois então. Susto e remorso. É, amigo, me bateu um remorso, um comichão na consciência, que só vendo. Pensei: castigo! E merecido, afinal, não era justo a coitada, ali, em serviço, pronta pra pegar no duro, e eu pronto pra vadiar...
– Agora, desentendi de vez, criatura. Você vadiando, sua mulher chegando num chevette vermelho pra trabalhar... Ela trabalha no motel...?!
– Trabalhar, trabalhar, não. Ela roda ali, acolá, fazendo uns bicos, biscate, entende?
– Se entendo... Entendo, e como!
– E lá deve ser propício pra mostrar e demonstrar a qualidade do seu produto que, aliás, garanto-lhes, é de primeiríssima!
– Imagino...
– E o melhor é que o moço, o ajudante, um Arnold Schuaznega melhorado nunca deixa a pobrezinha na mão, está sempre com ela. Ah! esqueci de dizer que minha gansa (é assim que a trato carinhosamente) é revendedora de produtos de beleza e de limpeza!
– Gansa... decerto, com ç, gança... Ih! deixa pra lá!
– Você e seus trocadilhos, piadista como sempre, hem?!
– Trocadilho, é...?! Bem, curiosidade indiscreta, pergunta maldosa:
E a louraça, dilatou a pupila do “cego”? – arriscou, com ironia, o desentendido, ou melhor, nem tanto.
– Uma catástrofe, meu caro! Além de quase ter morrido de susto, ainda fui vencido pelo remorso. Também, aquela desmancha-prazeres – brincadeira, tadinha de minha esposa! – precisava aparecer justo naquele lugar e justo naquele momento pra me deixar todo penitenciado?! E o vexame, então? Completo. E não houve mais santa que desse jeito de levantar meu astral. Até hoje, não sei o que aquela louruda ficou pensando de mim. Só sei que tive muita sorte, porque se minha mulher tivesse me visto, além da decepção de ter descoberto o tremendo infiel que sou, a estas horas, eu estaria no olho da rua ou com o passaporte carimbado para o inferno. E casamento é coisa séria, a gente não pode acabar com ele assim, sem mais nem menos, por culpa de um marido que adora traquinar nos compartimentos femininos alheios. Arre!!!