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domingo, 16 de outubro de 2011

Diário da Manhã - Dia 16/10/11

SEVERINO E A CALIBRINA

Lêda Selma

Desde cedo, o moleque Severino já praticava suas severinices. A cabeça, naturalmente chata, acomodava chatices e traquinices que deixavam mãinha fulamente severina e com os cabelos em posição de alerta. E aos vizinhos, costumava desabafar: “Arre, ema, que sujeitim mais espoleta! Pra certas coisas é ronceiro que só; pra outras, mais acelerado que ventania. E gosta de um arerê que só vendo; sim, não perde uma única oportunidade de se meter em trapalhadas”. É, coração de mãe é sábio...

Também, desde pequeno, já se mostrava falastrão e com tendências a esconder as estripulias de seus iguais. Por isso, não tardou nada, foi eleito Presidente da Câmara dos Estudantes de um grupo escolar qualquer do nordeste. E foi, então, que aprimorou seu talento para o esconde-abafa. Um paninho quente, aqui, para esconder a safadeza de um colega; uma peneira, ali, pra tapar o sol, caso um amigo cometesse certa esperteza; um deixa disso, acolá, se algum aluno faltasse com o decoro escolar... E, assim, aos poucos, o menino viu encorpar-se sua fama de protetor dos mais favorecidos, ou seja, dos mais favorecidos na arte de negacear, de trapacear, de avantajar-se em tudo. Bastava um estudante propinar (com vistas a uma nota melhor) e olha Severino tentando salvá-lo da punição. Se um outro mensalasse (por um abono de faltas), o garoto Severino agia em sua defesa. Maracatu, isto é, maracutaia, era com ele. E tudo terminava, sempre, em sarapatel, buchada ou chouriço.

Já na adolescência, o menino começou a se preocupar com o futuro. Ser ou não ser (político) era a questão. Sentia que levava jeito para o ofício. Afinal, tinha aquele traquejo tão providencial em determinadas situações; sabia engambelar qualquer um com notória maestria; não se importava com o que diziam, mas com o que fazia. Portanto, talento não lhe faltava. Nem ocasião para demonstrá-lo. A mãe, entretanto, preferia que o filho seguisse os passos de “Padim Ciço”; a avó, os de Luiz Gonzaga; os antigos colegas de grupo escolar viam-no como líder político e os mais afoitos até se lembraram de Lampião, cabra retado e símbolo da coragem nordestina. A tia-avó queria-o comerciante. E estava certa. Parênteses para explicar o porquê: o moço já havia exibido sua aptidão para o ramo, enquanto auxiliava o pai no armazém “De tudo um pouco”, anotando na caderneta as compras “no fiado”. Certo dia, um impasse: foram vendidos uns arreios e, por distração, o rapaz esqueceu de nomear o comprador. Mas a solução veio a galope: “debito no nome de todos os devedores do mês, que são mais de cem, e pronto! Se algum reclamar, peço desculpas pelo equívoco; assim, pego o devedor e, de gorja, os que, por constrangimento ou distração, não reclamarem. Um lucrão!”.

Severino, ainda na juventude, afeiçoou-se à calibrina, a famosa água-que-anjo-enjeita (embora já os santos, por tradição, contem sempre com a costumeira dose). E, por falar na tal, à cachaça nordestina, a depender de seu pedigri, Severino sempre impingia as mais jocosas alcunhas: “magrela”; “sensitiva”; “CPI”; “fuxiqueira”; “dadivosa”; “propina”; “desgoelada”; “sirigaita”; “mensalona”; “falcatrua”; “habeas corpus”... enfim, um arsenal de apelidos. Eh, Severino boquirroto, gente!

Festeiro por herança paterna, de certa feita, Severino acompanhou uns amigos a uma festa. Muita moça bonita, foguetório, políticos, comedeira (também no sentido de comilança) e a infalível calibrina. Ih! Severino estava feito! E que o estoque fosse gorducho! Afinal, talagadas e talagadas nunca foram suficientes para arriar Severino. Bom de copo, o moço esvaziava quantos lhe apetecessem. Naquele dia, entretanto, algo deixou-o intrigado. Ainda na terceira dose, de repente, começou a ver a cantora triplicada. Desentendido e encabulado, falou ao amigo mais próximo:

– Tô acabado, cabra! Mal comecei a beber, já vejo a moça xerocopiada, oxente!

– Calma, esse-menino! Que desassossego mais retado! Tu é mesmo o rei das trapalhadas! Num tem triplicação nenhuma, homem...

– Não?! Como não, se estou vendo três cantoras...

– É que as tais são trigêmeas, oxe!

sábado, 8 de outubro de 2011

Diário da Manhã - Dia 9/10/11

SÓ SE DEUS VIER PESSOALMENTE...

LÊDA SELMA

Padre Santinho recebeu, em confessionário, a visita de um fiel esbaforido e encabulado, Tristino, sujeito anguloso, pacato, de meios risos, franqueza inteira e pouca prosa. Um tanto sem jeito, depois de forçar uma tosse seca e falhada, o homem logo avisou o confessor:

– Olha, padre, o assunto é confidencioso, reservoso mesmo. Deus me livre de cair na boca do povo. Já basta precisar cair no ouvido do senhor, isto é, nos ouvidos, porque um fuxica logo pro outro...

– Fique tranquilo, filho, segredo de confissão é inviolável...

– Ela também, padre...

– Ela...?! Calma, filho, sem afobação! Diga-me o que lhe atormenta a alma...

– Alma não, padre, antes fosse! A atormentação é no corpo; a alma fica só na espreita, aperreada.

– Então, o que aconteceu?

– Desaconteceu. Desde que me casei com a Duvirge toda noite é a mesma repetição: deitar, relar, tretar e não consumar.

– Mas vocês estão casados há seis meses...

– Seis meses de tenta, recua; bate, volta; lambisca, mas não petisca. Uma desdita a minha vida. Duvirges diz que não casou pressas coisas, que tô é possuído, que toda noite ela sente um intruso descarado roçagando suas propriedades...

– Você foi com jeito, filho, com carinho?

– Se fui, meu padre, se fui...

– E ela, filho, não se rendeu?

– Ela? Só a renda da camisola! A diáboa da mulher recusou meus carinhos, me chamou de “arrenegado, pecador desavergonhudo, filho do troço ruim”. Esbravejou que só quero “safadagem” e gritou enfurecida quando lhe mostrei minha vontade: “Recolhe já esse espantalho, larga de possuição e me deixa drurmir”.

– É, Tristino, só mesmo conversando com sua mulher. Que ela venha falar comigo, sem demora.

– Nestorinha, padre, entrego pra Duvirge seu recado. E que Deus Se faça de enxerido e ajude o vigário nessa tarefa. A bênção, padre.

Maria Eduviges, a esperada, foi recebida, na sacristia, pelo padre, que a acomodou em uma cadeira surrada e pouco confortável. Sem rodeios, inquiriu-a:

– Minha filha, você gosta do seu marido?

– Gosto, sim sinhô, e é demais, pade. Home bão, trabaiadero e honesto quinem ele, só ele. Por isso, zelo da casa, capricho na boia, só pra agradar meu Tristino.

– Está certo, filha, mas e as obrigações de mulher casada? Ele é seu marido, tem lá seus direitos, porém, se sente rejeitado, à noite, quando se deitam, porque você não o aceita, recusa seus carinhos... está me entendendo, filha?

– Num tô entendendo o sinhô, e meu marido, antão, num entendo de jeito maneira! O home tá cumas esquisitice, cruzincredo! Dorme pelado, pula inriba de mim, me fala cada impropério, bole com minhas particularidades, e me cutuca de noite com um cutucador medonho.

– Eduvirges, minha filha, tudo isso se chama amor e é do amor que nascem os filhos, compreende? E o amor é abençoado por Deus; fui porta-voz do Senhor no dia em que casei vocês!? Deus autorizou seu marido a amá-la e a ter filhos com você, pode acreditar.

– Querdito não, pade. Deus num ia mancomunar com essas perdição, oxe! Tristino deve é se exemplar em São José, que nunca molestou a Virge Maria, só assim o encapetado achará conformação. Eu lhe prigunto, pade: o marido de Maria, a Virge, reclamou pra Deus da recusa da muié?! Não. Nem podia, pruquê foi Deus mesmo quem ordenou ao Isprito Santo a fazedura do fio, ora! Ele se conformou e pronto. Tamém, sou moça de famia, pade, e já até palavreei com Deus, assim: Pai, dê mais um servicinho pro seu santo amigo, pois resolvi deixar pro conta do enviado do Sinhô a consumação do casamento. E inté já tô aqui no jeito, só esperando.

– Que doidice é essa, filha minha? Vou explicar mais explicad...

– Dianta não, pade. Num arredo esta decisão da cabeça nem que o Isprito, o Santo, vague o lugar dele pro Zé, por causa de seus aperreios. E a num ser que o próprio Deus, por escrito ou pessoalmente, Se abale até aqui pra desatender minha resolvição, vou ficar quietinha, aguardando a santa lua de mel.

sábado, 1 de outubro de 2011

Diário da Manhã - Dia 2/10/11

CHORO POR TI, MEU VERDÃO!

Lêda Selma

É sabido e ressabido que sou esmeraldina legítima, que tenho o verde e branco entranhados na alma, no coração, na emoção, nos sentimentos e, sobretudo, na paixão. Digo legítima porque meu amor ao Goiás Esporte Clube transcende interesses, vaidades, oportunismos. Sempre fiquei à margem dessa avalanche de posturas que, passa ano, chega ano, sempre ronda o glorioso Verdão da Serra, marcado, no decorrer de décadas, pelo autoritarismo, pela megalomania, pelo monopólio de poder.

Nunca esperei retribuição, mesmo quando, por duas vezes, nos mandatos de João Gualberto e Syd de Oliveira Reis, dois esmeraldinos de estirpe, presidentes de destacada atuação, apesar das pechas que lhes foram injustamente impingidas, ocupei cargo na Diretora do Clube, sem qualquer remuneração (nem ajuda para combustível). Bastava-me a honra de servir meu Clube. E o fiz com alegria e despojamento, como convém a um autêntico esmeraldino.

É incontestável que, para as glórias alviverdes, muitos contribuíram, não apenas um ou outro; muitos, porém, vários desses vivem à sombra de mitos de barro que, se contrariados, os alijam do Clube, como algo descartável. Ao ato de assenhorear-se de um poder temerário, dou um nome: arbitrariedade.

Tempos de ouro, já viveu o Goiás. De respeito. De admiração. De credibilidade. De orgulho goiano. Goiás pioneiro em tudo. Referência sem igual: na organização, na compostura, na seriedade, na solidez estrutural. O Goiás, NOSSO bem precioso, patrimônio de uma família, sim, de uma família sem sobrenome, a FAMÍLIA ESMERALDINA, composta de sócios e torcedores, muitos deles, genuínos amantes das cores que construíram a História do Clube e consolidaram sua tradição no âmbito nacional, como expressão maior do futebol do Centro-Oeste e membro da elite futebolística brasileira.

Melchior Luiz Duarte colocou o Goiás no, à época, Campeonato Nacional. Raimundo Queiroz, na Libertadores da América e Syd Oliveira preparou-o para brilhar na Sul-Americana, em 2010. E só não integrou a comitiva que viu o time disputar a final, porque já não era mais presidente do Clube, por força de desígnio ‘superior’.

Choro por ti, meu Goiás, por saber-te presa de desmandos em nome do poder. Choro por ver-te aviltado por negligências e omissões. Choro pelo descaso que humilha tua História e enodoa tuas cores. Choro, meu Goiás, também de saudade daqueles tempos em que não existiam boleiros e sim, jogadores que vestiam e AMAVAM tua camisa; em que não existia poder absoluto e sim, companheiros voltados para o teu crescimento. Pois é, choro por ti, meu Goiás, ao me lembrar desse tempo de honradez, a cada dia, mais longe...

Hoje, meu Goiás amado, és motivo de chacota nos bares, nas praças, nos estádios, nas reuniões, nos sites, na mídia, a mesma mídia que cria deuses e protege demônios. Tudo o que conquistaste escorre nos ralos da banalização. Estás no cadafalso, e teu carrasco, cinicamente, assiste, de camarote, ao teu desespero, antes de foicear-te, qual mensageiro da morte. Suplicas por socorro, mas continuas à míngua. Enquanto isso, frases falseadas, jogos ridículos de palavras, justificativas risíveis (porquanto caricatas), discursos vazios e previsões que ofendem a inteligência e a sensibilidade dos legítimos esmeraldinos zanzam acintosos, aqui e acolá, na tentativa de camuflarem verdades.

Choro por ti, meu Goiás, pela sanha e sadismo de teus algozes, pelos desatinos que te desfiguram o futuro, pelas incertezas que te esgarçam as asas e te abortam os sonhos. Agonizas sem dignidade, sem altivez, sem reação. Infelizmente, és cria deste tempo sombrio, carente de esperanças e de tramontana e repleto de poderio desenfreado.

Choro por ti, VERDÃO, pela pasmaceira que envolveu tua jornada na Série B, série que, sequer, é tua. Choro pela iminência do abismo, pelo fracasso que quase já dobra a esquina. Todavia, garanto-te: aos que foram alijados de tua casa, sobrou indignação. Por certo, pensam os adeptos da filosofia dos tiranos: banidos, eles não poderão combater o autoritarismo. Estão enganados. Injuriados, sim. Acovardados, nunca! Alertas, sempre! É essa a posição dos que te amam e querem recuperar tua dignidade e teu prestígio.

Para mim, repito, futebol é arte, é poesia tecida com os pés e burilada com a cabeça, com as mãos, com o peito. Futebol é estado de emoção, de comoção, de paixão. É o encanto do drible, a fascinação do passe, a trajetória da bola rumo ao Olimpo: o gol. É a dor angustiada do goleiro em seu instante ápice de solidão (Harlei e Rogério Ceni, referências na categoria, bem o sabem). Futebol é a alma, feito pássaro, a planar numa tarde dourada, numa noite azul, ou a cobrejar pelo gramado em forma de bola. Futebol é conjunção de amor e dor. É cultuar um time e sofrer por ele. É rito de glórias e de derrocadas. Que o diga meu Goiás Esporte Clube, o VERDÃO da Serra, desgraçadamente, à beira do despenhadeiro!