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sábado, 30 de julho de 2011

Diário da Manhã, 31/7/11

ESPERTO, O SANTO

Lêda Selma


– Fazer pouco dos santo dá azar. Atraso de vida. Desando das coisas. O bom mesmo é deixar os santos em paz, quietos, lá com suas rabugices, manhas e manias. Uns são implicantes; outros, emburrados; alguns, excêntricos. Mas todos avaliam com rigor seus devotos e se chateiam com qualquer desrespeito. Meu predileto é São Benedito, santo poderoso; e o que já fez de milagres não está escrito; milagre de tudo quanto é jeito: pra enriquecer, pra curar doença grave, pra salvar da morte, de acidentes, de ladrão. Se convocado, age mesmo – disse-me certa beata.
Naturalmente, minha curiosidade não poupou estratégia para esmiuçar os detalhes da ação do santo. E a beata empolgou-se:
– Foi com uma amiga minha; a coitada – coitada! – fazia de tudo (Santo Antônio que o diga...) para arranjar um marido, pois não aguentava mais ver as vontades íntimas na penúria. Já balzaca, não fazia exigências maiores; quase nenhuma. Queria um encosto, e se conformava com qualquer tipo. Um dia, após cansativas horas de trabalho e toda uma rotineira rotina, seguia desalentada para casa quando, de repente, surgiu-lhe à frente um sujeito enorme, avantajado além dos músculos, mal-encarado, com pinta de tarado. Assustada, a infeliz gritou: “Valei-me, São Benedito!”.
Mais ainda, interessei-me pelo desfecho. E ela continuou:
– E o santo, sem pestanejar, sem entender bem a essência do pedido, espantou o malandro. E, após o susto, a pobrezinha, desapontada, ficou furiosa com seu protetor. E não parava de repetir: “É muito azar mesmo! No calor da atarantação, recorri ao santo, e faltou-lhe sensibilidade para interpretar minha súplica. Por que não se fez de surdo, de distraído e deixou a desgraça (no bom sentido, claro!) acontecer? Depois, sim, se fosse o caso, cuidaria dos danos. Mas antes...?! Não me conformo, ele foi precipitado. Que mania de mostrar bons milagres, será o Benedito? Será não, foi!”.
A assediada, dizem, continua engastalhada na solteirice, ainda à caça do príncipe encantado ou não. E maldiz a competência de São Benedito até hoje: “Mesmo convocado, ele não tinha que meter o bedelho em departamento alheio, que falta de ética! Problema de marido, de tarado, de Don Juan... é com Santo Antônio, o casamenteiro, amparador das carentes avulsas, ora!”.
E por falar em Santo Antônio, seus devotos não economizam elogios quanto a seus feitos:
– Santo de fibra, com S maiúsculo. Ciente de sua responsabilidade e do peso de sua competência. Capaz de façanhas mirabolantes, é o recordista em milagres, titular para as coisas do coração. Nunca brincou em serviço. É, jamais, soube-se de um único vacilo dele; minha cunhada que o diga.
Ih! essa história de cunhada... – reticenciei, maledicente. E dei espaço à prosa.
– Minha cunhada sempre confiou muito em Santo Antônio e, jamais, deixou de colaborar com suas causas, uma delas, os pães que distribuía a seus pobres. Uma sua amiga de infância, doidinha por um marido, pediu-lhe, por empréstimo, a imagem do afamado casamenteiro, embora colocando sob suspeita a confiabilidade de seus serviços: “Ele é bom mesmo nisso? Mas se nem casado foi...!?”. Minha cunhada, mesmo ofendida, presenteou-a com uma miniatura do santo. A candidata a senhora bateu um papo com o santo, contou-lhe de suas precisões e formulou-lhe seu pedido, em trezenas e trezenas. Sem obter resposta, decidiu torturar o “negligente”, como o chamava, gritando em seus ouvidos lamúrias, cobranças, reclamações. Calado e inoperante, o santo permanecia. Nada de aquiescer aos seus clamores. Indignada, resolveu livrar-se dele, colocando-o no meio de um arranjo de flores secas que foi jogado fora. E, para surpresa geral, o santo pulou da lixeira e caiu de bruços! Arrepio total e irrestrito! Segundo a crendice popular, cair de bruços significava pedido de misericórdia, de socorro. Complacente, outra beata, que a tudo assistia, resolveu desvirar o santo. E, para seu espanto, ele ficou em pé, com os olhos crispados na malfeitora. Foi, então, que percebeu: não era Santo Antônio e sim, Santo Onofre. E concluiu: o santo milagreou em causa própria.

sábado, 23 de julho de 2011

Crônica de Lêda Selma - Diário da Manhã - 24/7/2011

QUE CANSEIRA!

Que tal discutirmos o sexo dos anjos? Talvez, quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Quem sabe, o culpado pelo pecado original: a Serpente, Adão ou Eva?! Ou o motivo por que o Saci Pererê era portador de necessidades especiais? Hã... um jeito de se encarar algo/alguém de costas?! E, ainda, por que não temos um olho na parte de trás da cabeça?!
Qualquer assunto é menos desgastante e enfadonho do que as controvérsias sobre o tal emprego do vocábulo presidenta. Meu Deus, Jesus Cristo, Santa Maria, Todos os Santos, “Padim Pade Ciço”, anjos, arcanjos, querubins, serafins, orixás, socorro! Livrem meus ouvidos e meus olhos dessa chatice, dessa besteirice! Não aguento mais tamanha lenga-lenga, essa ladainha com cara de discussão fastidiosa. O próximo a enviar-me e-mail citando os descabidos e ridículos exemplos, porquanto inexistentes, “adolescenta, doenta, estudanta...” e demais excrescências aparentadas, processarei! Por danos visuais. Se o acinte for verbal, danos auditivos!
Repito: a palavra é legítima, seu uso, correto. É substantivo feminino, conforme dicionários de incontestável importância: Houaiss, Aurélio, VOLP (da Academia Brasileira de Letras), Caldas Aulete, Michaelis, Cândido Figueiredo, Cegalla, Luft, Pasquale, Enciclopédia Delta Larousse, Dicionário Escolar da Língua Portuguesa (aqueeeele de capa dura, grossa, preta (melhor, afro-descendente), organizado por Francisco da Silveira Bueno, em 1956, destinado aos estudantes). Presidenta? Ih!... não é de agora...!
Em 1943, com aprovação unânime da Academia Brasileira de Letras, surgiu o Vocabulário Ortográfico Brasileiro da Língua Portuguesa, de Aurélio B. de Holanda Ferreira, cuja base foi o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa (edição, 1940), após acordo entre as academias Brasileira e Portuguesa. Em ambos, “presidenta – s.f.”.
Tudo bem que os inconformados prefiram presidente à presidenta. Qual o problema? Devem estar escorados no “Vocabulário Portuguez & Latino”, do padre inglês Rafhael Bluteau, que, residente em Lisboa, publicou-o, em 8 volumes, no período de 1712 a 1728, tido como a primeira bem-sucedida edição do gênero. Por certo, alegraram-se, os desafetos de presidenta, ao verem o vocábulo, sem classe e gênero gramaticais definidos, de cueca, terno e gravata. Sim, porque, de forma taxativa, ele concede exclusividade ao homem para o ato de presidir: ”Presidente: deve ser homem, douto, versado nos negócios concernentes ao seu officio (...), & mais q todos dará conta a Deos das injustiças que se commetterem, como causa principal dellas” (sic).
Que se regozijem, pois, mesmo com séculos de atraso, os/as machistas de plantão (ai, ai, ai!!! Nem pensem em “machistos”, por piedade!).
Um brasileiro, do Rio de Janeiro, residente em Lisboa, Antônio Moraes Silva, em 1789, ampliou e enriqueceu o trabalho do padre Rafhael, com seu “Dicionário da Língua Portuguesa”, trabalho considerado o mais completo da categoria. Sua 2ª edição, a definitiva do autor, data de 1813. E pasmem: é de um goiano, Luiz Maria da Silva Pinto, natural da Província de Goyaz, o primeiro dicionário de língua portuguesa, escrito e publicado no Brasil, em 1832 (foi impresso em Ouro Preto/MG), intitulado Dicionário - Língua Brasileira. Sobre presidente, é lacônico: “part. a de presidir” (sic). De enorme significância lexicográfica e histórica, trata-se de uma preciosidade rara e quase desconhecida.
Felizmente, a língua, o tempo, a história são dinâmicos e não, estáticos, e alimentam-se de evolução. Dilma que o diga! E, também, os vocábulos!
Anedota ou verdade, contam que, um homem do povo, ao ouvir discursar Rui Barbosa, empolgou-se, e, todo cheio de si, disse ao orador: "Eu tenho um livro lá em casa que tem tudo o que o senhor falou". Surpreso, Rui perguntou-lhe: "Que livro é esse?!". E o homem simples: "Dicionário". Incito os detratores de “presidenta” a uma passadinha pelos dicionários (mais novos que o do padre Raphael, por favor!), assim, quem sabe, deixarão em paz a palavra!? Respeitá-la é também legítimo!

domingo, 17 de julho de 2011

À deriva...

Lêda Selma


Recrias sem jeito
esse jeito tão teu,
silencial e intrépido,
de machucar sem ferir.

E me tornas de vidro,
e me entornas os sonhos,
e te tornas aragem
e te vais sem partir.

Só rastros me deixas
nas deixas dos becos
que me estreitaram o caminho.

E me vejo à deriva,
e, assim, menos tua,
e mais frágil que o tempo.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Diário da Manhã - COISAS DE UM PIO - Lêda Selma

COISAS DE UM PIO





Tudo começou em forma de mal presságio e de gritos: “Piado de coruja entrecortado de choramingos da chuva. Ouviram? Deus nos acuda!”.
A noite, de um azulmarinho sisudo, aconchegava o vento acerado e lamuriante que empurrava a janela para se acomodar em algum canto do quarto. De repente, a correria se fez anunciar. “Cruz credo!”, “Crendeuspai!”, “Maria protegei-nos!” e tantas outras benzeções e falações arrulhadas pelo mulherame esparramado pela casa. E o arrepio, então, correu solto e penetrando-lhes as longices mais secretas.
– Eu senti a presença da malfazeja aqui, agorinha mesmo. Credencruz! Eu tô desconfiada que a hospedeira do além soverteu lá da fundeza do abisso e veio se abancar entre nós. Aquele pio... Arre! rodopiou em meus ouvidos e me fez tremer feito capim à mercê do fogo – vociferou Inocência, alarmada com o sucedido.
– Ih! então, se a tal veio, não há de perder a pernada! E se piou, tá piado. Alguém aqui ganhou uma passagem pessoal, intransferível e sem o carimbo da volta. Que mal lhes pergunte, amigas, de quem é a vez, de quem? Minha sei que não é, pois acabei de ser checapeada de dentro pra fora e vice-versa pelo clínico geral e ele me garantiu uma saúde de aço. Inoxidável, ainda por cima. Portanto, a escolhida da desconjurada é uma de vocês. Segundo os entendidos, quem ouviu o pio primeiro é o passageiro do indesejável voo.
– Dizem que pio de coruja é a música predileta da malvinda... Felizmente, eu não ouvi nada.
– Nem eu. E a primeira que ouviu o piado vai dançar a Valsa do adeus com ela!
– E depois embarca. Ou emborca. Sei lá. Acho que tanto faz.
– Credo, que gente mais agourenta! Tudo isso só por causa de um pio de coruja? Um piozinho ouvido assim, feito chiado de vento, ao acaso, mas não por mim, com a graça de Deus.
– Ao acaso? Pois tá mais é para ocaso, isto sim. Pio definitivo, eternal. Que não ouvi, mas que foi ouvido e anunciado por alguém... de nome Inocência...
– Um pio com remetente e destinatário. Um pio certeiro. Para uma de vocês, pois também não ouvi nenhum.
– Vejam, a Amandina desmaiou! Então, foi ela quem ouviu primeiro, pronto!
– Amandina do Orfeu? Ufa, antes ela do que eu!
– O que houve com a desmaiada, gente, por Deus?!
– Pois é, Deus. Ele a escolheu. Convite irrecusável, pelo que percebo, ou melhor, pelo que ela percebeu. E sem direito a acompanhante.
– Será? Sei não, tô achando que a Branca tá mais desbotada, descalibrada, com cara de quem viu o que não queria... E como treme e retreme! E os olhos parecem desorbitados, sem vida...
– E ali, amuada num canto, o semblante muito esfalfado... A vez, concordo, é dela, sem dúvida.
– Esperem aí: foi a Inocência quem gritou primeiro, ainda com o pio a lhe escorrer pelos ouvidos.
– Boa lembrança... Mas e quem desmaiou? Amandina! Preparação para o embarque?
– Ou desembarque? Sei não, acho que, pelo menos, essas duas estão na fila... Vou espiar, me escorar na certeza e garantir a notícia. Já volto.
– Socorro! Ela tá piando, isto é, chegando, pior ainda!
– Ela quem?
– Ouçam os passos, ou seja, os ossos da funesta.
– Coruja piou, a foice baixou.
– Não disse? Era mesmo a enxofrenta, a peçonhenta. E aquele pio, o sinal.
– E se a pestilenta, pra ganhar tempo, fizer o serviço por atacado?
– Periga sim... Ai, ai, ai, fazer o quê?!
– Vou me prevenir com uma prece em causa própria: “Ó, Senhor da Boa Morte, recebei com hospitalidade uma dessas duas, ou as duas, ou qualquer outra do Vosso agrado, desde que não, esta serva que Vos fala, claro! E, na rabeira do ensejo, peço-Vos, antecipadamente, adiamento de minha hora, acrescido de algumas prorrogações e substituições. E se Vossa agenda estiver em ordem alfabética, pode deixar meu nome pro final. Sabe, sempre preferi Zabadia, bem mais bonito e sonoro que Abadia e o melhor, mais seguro. Assim, seja feita a minha vontade (com todo o respeito, Pai). Amém”.
O pio da coruja? Apenas, um engano auditivo. Na verdade, o velho assobio de certo amado, sumido há tempos, e reaparecido assim, num rompante, na garupa da surpresa. É, também de alegria se desmaia... Amandina que o diga!

domingo, 3 de julho de 2011

POEMAS DE LÊDA SELMA

NEM SEI DO AMOR...



Escondi atrás das sombras,
teu silêncio arredio.
E o vento que te fez pua
teceu farpas, enredou sedas
nos sonhos esmorecidos
em fartas plumas de luas.

Traguei teus restos de nadas
e bani a dor que era tua.
Fisguei de teus olhos, vontades,
e de teus guizos e risos
fiz música, provei prazeres
e me fartei de saudades.

Agora, revejo instantes
e me imanto no encanto
que rabisquei em teu corpo
quando meu corpo sonhava.
Nem sei do canto esquecido
no canto em que deixei perdidas
as sobras de tuas luas...

Nem sei do amor que nem sei
se escapuliu ou nasceu
naquela tarde vadia.
Só sei dos sonhos que sinto,
e desta ferida vermelha
– bem aqui do lado esquerdo –
mofando em meus labirintos
e me vigiando de esguelha.
Só sei das dores que espanto
e dos medos, inda tantos,
suados de amor e vinho.



TERRA-MÃE




Das estrias da terra,
a vida em floradas de trigo,
e o grão germinando vidas,
desnuando sonhos
e saciando silêncios.

Das funduras da terra,
o sustento à espera
de mãos parideiras
que sopesem dores,
silenciem sedes,
aparem estrelas.

O homem sua, e sangra,
e mistura suas dores
às vísceras da terra,
para adubar colheitas
de floradas vindouras.

É o rito da vida,
é o ciclo da espera,
é o esterco humano
pulverizando a fome.
UM SONO SOSSEGADO


Lêda Selma


– É, doutora-juíza, meu caso é complicado. Sou homem sério, maduro e, na verdade, carecia de uma companheira, moça honesta, voltada para as coisas do lar e com pensamentos de asas curtinhas, bem curtinhas! Se necessário, cortadas bem rente que é pra não deixar a mente sair voando por aí, perdida na vadiagem. Pensamento é um perigo, é atalho pra perdição – falou pausada e arrastadamente um senhor de porte franzino, voz e gestos trêmulos e olhos de um marrom cansado e sonolento.
A juíza, uma cinquentona insossa, de ar austero e nenhuma simpatia, esfregou as mãos como se espantasse a impaciência, mexeu em alguns papéis sobre a mesa, como a demonstrar pressa, e olhou fixamente para o quereloso, exigindo-lhe objetividade:
– Bem, o que posso fazer pelo senhor? Se é que posso...
E ele, meio sem jeito, tentando fugir da impertinência da magistrada, encantoou a timidez, pigarreou duas vezes e, encolhendo-se na cadeira, respirou fundo, desviou o olhar e recomeçou:
– Fiquei viúvo há mais de vinte anos, meritíssima, e, desde então, a tristeza se acomodou em meu peito. Assim como o peso, a idade aumentou, a velhice chegou implacável, na rapidez do tempo (já virei os oitenta e quatro), a solidão, dia a dia, acochou mais e mais, a necessidade de uma companheira para cuidar de mim não parou de esgoelar noite a dentro, dia afora... e, então, resolvi procurar alguém pra sossegar todo o meu desassossego. A senhora sabe, quem procura, quase sempre acha, pois é, achei: uma sessentona simpática, discreta, recatada, evangélica, daquelas com a bíblia sempre nas mãos, olhos fincados no chão, tranquila por demais, quero dizer, durante os dois meses de namoro. Foi só a gente se casar, e ela se endiabrou, doutora, se revelou gananciosa pelas coisas do sexo, uma perdulária sexual compulsiva; olhe, não sei onde a desregrada arranja tanta energia pra gastar, não sei, a senhora entende?
– Não, não entendo; se o senhor puder ser objetivo, quem sabe?!
– Bem, por conta dessa gulodice, a faminta não me dá mais trégua noite alguma, nem nas tardes pares da semana, que, aliás, são mais que as ímpares. Diz, esbravejando, que quer tirar a diferença do tempo perdido no marasmo da virgindade, que exige seus direitos de mulher casada, e que preciso cumprir meus deveres de marido, conforme a senhora falou no dia do casamento, e eu prometi. A bem da verdade, meritíssima, não me lembro disso... Também, surdo dos ouvidos e da memória, como sempre fui em certos momentos...
– Mas, e daí? – retrucou, irritada, a juíza.
– E daí é que a gananciosa solicita meus préstimos carnais com uma pontualidade e sofreguidão constrangedoras, de arrepiar até os cabelos que me faltam. E eu lhe pergunto, doutora-juíza: tenho lá idade para tais extravagâncias, para trabalhos forçados e até horas-extras?! Além do mais, não me casei pra ser consumido e sim, consolado.
– O senhor conclua logo o motivo de sua vinda, pois ainda não entendi o que posso fazer...
– Anular o casamento. A lei tem que ter misericórdia de mim, senão, qualquer noite dessas, durmo aqui e acordo do lado de lá, porque meu coração não tem mais fôlego pra tantas danuras.
– Não é assim, meu senhor. Eu não posso ir anulando casamentos...
– Pode, sim! A senhora fez o casamento, desaguou todo aquele palavrório, me fez prometer o que nem ouvi, então, pode muito bem desfalar o falado, e eu desprometer o prometido (que, a bem da verdade, se prometi, foi sem querer). A senhora não me entendeu, meritíssima: na realidade, eu só queria me casar pra ter uma mulher relando em mim enquanto eu dormia um sono sossegado. Agora, relar para me manter acordado, tenha paciência, ora! Afinal, meu patrimônio sexual foi tombado, há muito, e não há lei que reverta isso.

DIÁRIO DA MANHÂ - 3/6/11

E QUE OUTRO JEITO...?!

Lêda Selma

Festeira por vocação e prazer, desastrada por descuido ou por destino, ela, a moça de cabelos em espiral marrom-tamarindo, desgrenhados por natureza, é a própria festa. Desinibida, espirituosa e com uma frase de efeito sempre na agulha da língua, prontinha para saltar matreira e tagarela, a moça, balzaquiana que mal disfarça a injúria pela tal condição (“Ah! se esse Balzac já não estivesse morto, eu, pessoalmente, me encarregaria de finá-lo!!!”), nem por isso perde a chance de colocar em permanente sentinela seu par de olhos amorenados e futriqueiros (“Vai que aparece, de repente, um senhor pedaço de bom caminho, um desses desconsolados da vida, e olha eu aqui na espreita, com o ombro armadinho pra dar o bote. Depois, o resto se junta ao ombro e aí, sai de perto!”).
De festa em festa, de barzinho em barzinho, a moça de riso arreganhado e festivo não dispensa uma geladíssima loiruda (“Podem me privar de tudo – bem, de tudo é força de expressão, claro! – mas não me privem desta gostosa. Epa! Que as loiras não se assanhem, pois só com ela divido a boca”).
Uma boa mesa, bons companheiros e um papo divertido são suficientes para que sua insônia induzida vare qualquer expectativa noturna ou diurna e expurgue a rotina tão característica dos tais dias úteis da semana (“Não sei por quê, sempre preferi os dias inúteis; para mim, são da maior utilidade”).
De tirada em tirada, seu lado espirituoso mostra-se cada vez mais acintoso e farturento. Mas não só disso vive uma donzela nem tão convicta assim. Também, de trapalhadas.
Certa vez, aproveitou-se da ausência prolongada do irmão mais velho e, sem o menor constrangimento, surrupiou-lhe o carro de estimação, à moda empréstimo aleatório, e rumou para a praia; antes, uma passada pelo posto para abastecer o beberrão. De repente, o encontro com velhos conhecidos e um estoque de assuntos interessantes. Daí a uma esticadinha ao quiosque praiano mais perto, um salto. Lá pelas tantas, e após tantas, lembrou-se do carro. Porém, não, de seu paradeiro. Para apressar as coisas, antecipou uns pulinhos e a eles anexou uma súplica fervorosa ao milagreiro São Longuinho. Nada. Recorreu a Santo Antônio. Nem sinal de sua boa vontade. Com pouca paciência e muita chance de, em breve, se dar mal, não titubeou: prometeu aos santos “um ano de abstinência alcoólica – só refrigerante”, jurou! –, caso fosse achado o perdido.
À tarde, o sumido foi localizado pela própria memória da infratora. Resgatado, no posto de gasolina, a lembrança da promessa veio à tona e, com ela, a conclusão: “A pressa é inimiga da precipitação”. O jeito, maquinar uma forma de negociar a promessa com os santos, por intermédio do padre da redondeza. Naturalmente, negaça à vista:
– Pois é, padre, precipitei-me. No auge do desespero, prometi aos santos abster-me de refrigerante durante um ano. De tão mixuruca, nem sacrifício é. Que tal algo mais consistente, mais dificultoso... Uma cesta básica! – completou eufórica.
Indignado com a “negociação” tentada com os santos e com ele próprio, o padre esbravejou:
– Para que respeite mais aqueles que foram privilegiados com a santidade e com um lugar especial ao lado do Pai, para auxiliá-Lo em determinadas tarefas, eis sua penitência: dois anos de cesta básica mensal a crianças carentes, e, pelo mesmo período, abstinência de refrigerante, ah! e também de álcool.
De volta à rotina, resolveu, após o jantar, expor algumas fotos à apreciação familiar. De repente, o irmão, estupefato e desentendido, vociferou: – O que meu carro está fazendo aqui nesta foto?! E ela, dissimulada: – Só pode ser criatividade desses fotógrafos excêntricos, ora! Eles inventam cada imagem...!? Deixe-me ver a foto... Não lhe disse? Veja que doidice: aqui, no lugar do carro, existia antes uma árvore. Coisas de licença poética, não, não, fotográfica, só pode ser.