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sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

CRÔNICA DE SÁBADO - DIA 18/12 - DIÁRIO DA MANHÃ

À TRIPA FORRA

Lêda Selma

– É mesmo como dizem: até Deus duvida das coisas acontecidas nestas bandas.
– Se duvida... E é cada uma de deixar até Ele de queixo na mão.
– Verdade. Ah! e esses nossos amigos, patusqueiros incorrigíveis!? Criam rebordosas que não deixam saudade.
– E que rebordosas! Aquela, então, da menina Imaculada, pouco depois de tomar estado...
– “Tomar estado”...?! E que esquisitice é essa?! Por acaso, a tal Imaculada sofreu possuição?
– Que possuição que nada! Ela se matrimoniou, ora! Os senhores não se lembram do falatório que zanzou de língua em língua?
– Todos se lembram! Um caso danado de esquisito, aquele, Deus me sombreie a memória e me refresque o espírito!
– E o vexame, então?! Dos piores, convenhamos...
– Também, pudera: um marido como aquele...
– Ih! estou por fora! Sou novo aqui, portanto, desconheço o ocorrido. O ocorrido e esse palavreado. Como imaginar que “tomar estado” é o mesmo que casar?! Bom, minha curiosidade lhe pergunta: e o tal marido?
– Muito bem. Matracaram por aí que, três dias após o casamento da coitada com o Pescanildo, filho mais moço de um fazendeiro de muitas posses, pois bem, em pleno fulgor da lua de mel, ele saiu pra pescar, com uns amigos, por “pura falta do que fazer”, pasme!
– O quê?! “Por pura falta do que fazer, em pleno fulgor da lua de mel”...? Quer dizer que o marido trocou a mulher pelos peixes?!
– Foi o que concluíram, após a história evadir-se da própria boca do recém-casado! Dizem que toda aquela manhã, destinada às estripulias do amor, foi consumida em tentativas impeixíferas, melhor dizendo, inúteis. Os peixes? Que nada! “Carência de isca boa”, resmungava, aos companheiros, o ocioso, isto é, o marido, a bem da realidade, o faltoso conjugal.
– E a mulher... Hum!... suponho, fresquinha, cheirosinha e cheia das vontades, na vã espera pelo inativo... É, no quesito folguedos conjugais, um canastrão, hem?! Mas e daí?
– Daí é que ele tentava, a todo custo, resolver o impeixe, não, não, o impasse, ou seja, a “carência de isca boa”. De repente, uma dica paterna sobrevoou sua mente; decidido, adonou-se da velha espingarda e... cric! Com um tiro, um só, alvejou de morte uma rolinha doméstica – xodó familiar e, em especial, da Imaculada – antiga hóspede da enorme e velha árvore que refrescava o varandão, nos fundos da cozinha. Distraída, a pobre avezinha passeava lépida pelo local, sem desconfiar que fazia seu último voo...
– Bem, e então?
– Sem o mínimo remorso, nem mesmo afetivo ou ecológico, o malvado cortou a cabeça da falecida rolinha.
– Uma rolinha morta e decapitada... Deixa pra lá. Prossiga.
– Afoito, e com a expectativa ainda mais acesa, Pescanildo, após o malfeito, reanimou a tralha e rumou, de volta, para a lagoa.
– E...
– Peixes aos borbotões! Cada peixe! Sem dúvida, pesca farta, mas que quase enfarta a desgostosa esposa, já farta de tanta inadimplência marital.
– Como assim, criatura!?
– Animado com a façanha, que lotou cestos e cestos de peixes, o tresloucado marido entrou em casa atroando: “Mulher! Mulher! É peixe que não acaba mais, aos montões, venha ver, venha! Isca batuta aquela bendita cabeça!”.
– Homem de Deus, posso adivinhar o motivo do quase enfartamento da mulher do tal marido, ou melhor, fiasco de marido! Prossiga.
– Bem, com o semblante meio nublado, Pescanildo baixou a voz, jogou os olhos no chão, e falou para a mulher: “Só há um problema, querida, e sei, vai chatear você. Lamento, mas tive de sacrificar um bem muito precioso: nossa rolinha, mais precisamente, sua pobre cabeça”...
– E ela?!
– Surpreendente, respondeu: “O que não tem jeito, ajeitado está. A rola é morta e não adianta chorar sobre as penas espalhadas, nem sobre nossa lua de mel depenada. Agora, se vira, negligente! Quero curtir à tripa forra o que resta desta tarde. Portanto, levanta, sacode a moleza e dá a volta por cima. De mim, naturalmente. Arre!”.

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