ESTRATÉGIA EXITOSA
Lêda Selma
– Alô, poeta, sou eu, aquela que vive de mal com a vida e que já não sabe o que fazer com tanta solidão e com tanto excesso de nada. Aquela que só consegue sonhar dormindo e, apenas, de vez em quando. Aquela para quem a alegria virou as costas e a esperança cruzou os braços. A poesia? Ah! lavou as mãos há muito tempo, abandonou-me! Sou eu, amiga, a proscrita do amor, a renegada da felicidade, aquela que possui mil e uma inutilidades. Sabe quem é, não? Claro que sabe! Com tantos dados do meu perfil, impossível não me identificar. É necessário dizer que, um dia, fui também poeta? Escute, você estava dormindo? Estou incomodando? Pode dizer...
Meio zonza, a ouvinte-poeta tentou entender o quase incompreensível. Reconheceu a voz, o repertório, as sutilezas truncadas mas não, o significado do telefonema àquela hora da madrugada, uma madrugada sisuda, de estrelas em debandada e lua cochilando displicente. Nesse clima, as palavras bocejaram algumas dúvidas e sacolejaram a inércia da recém-acordada:
– Sei, sim, quem fala. Não sei é o que você está falando. Pode me traduzir esse blá-blá-blá sem risco e sem rabisco?
– Uma grave e terminal crise, amiga. Existencial, poetal, dialetal.
– Mas a esta hora, mulher?! Não dava para a tal crise esperar um pouco mais, pelo menos, até amanhecer? Crise folgada a sua, hem?! Chega, instala-se, telefona, atordoa a madrugada, interrompe um sonho gostoso, acorda sua dona... Crise sem-cerimônia, espaçosa e malvinda!
– E muito séria, pode acreditar. E é seu o privilégio de assistir à sua última apresentação, ao seu último ato. Com direito a final trágico e tudo o mais.
– Privilégio?! Você chama de privilégio ter o sono detonado em plena madrugada?! Esse privilégio é transferível? Bem, desentale de vez toda essa lereia e me deixe dormir!
– Tudo bem. Você é o receptáculo de minhas últimas palavras: deixo a vida para entrar na eternidade! Adeus, amiga-poeta!
– O eufemismo, nem um pouco original, significa agir por conta própria na passagem desta para a outra?
– Sim. Vou desistir da caminhada. Minhas ilusões não têm mais preparo emocional para um trajeto tão difícil.
– E você já escolheu o modo de fazer a travessia?
– Já. E sem chance para a lei da gravidade mudar de ideia ou de rumo. Nem para a poesia pedir arrego.
– Tenha paciência! Que conversa mais sem cós nem barra, a estas horas, criatura?! Um feito desse porte carece de preparação, de ritual, de criatividade... Cadê seu veio artístico, poético, ora!?
– O quê?! Não entendo seu deboche num momento tão dramático...
– Dramático é acordar-me, é abusar de meus ouvidos e de meu sono. Escute, deixe isso para amanhã, assim, haverá mais tempo para a organização de um desfecho poético e inesquecível, à altura do seu merecimento. Improvisação? Plágio? Nem pensar! Use seu talento, E preste atenção: proíbo-a de defuntear-se nesta madrugada, ouviu? E agora me dê trégua, me deixe dormir, afinal, preciso acordar bem descansada para prestigiar seu velório, sem fazer feio. E, tomara, o sol chegue com um riso amarelo para recepcionar sua alma...
– Onde está sua sensibilidade de poeta? Quanto descaso!
– Sensibilidade, não sei. Sono, este sim, está aqui, pendurado em meus olhos, a coçar minha indignação, a desenhar profundas olheiras em meu rosto e rugas em minha paciência. Você sabia que poeta dorme, hem!?
– Estou chocada com sua frieza, com sua falta de solidariedade, você não gosta de mim...
– (Íngua de virilha! Não me faltava mais nada! Será que, além de Édipo e Electra, existe também complexo para torturar amiga? – pensou, lá com as penas de ganso de seu travesseiro, antes de voltar ao assunto). Com frieza ou sem frieza, repito: você está proibida de morrer até que encontre uma forma menos lugar-comum de fazê-lo. Amadureça sua inspiração, lustre a imaginação, espere o dia acordar e, então, mãos à obra! Ah! e só após as dez horas, naturalmente! Sim, porque se Deus ainda não lhe mandou o convite, por que a pressa? Ele pode até se zangar por causa de seu enxerimento. Melhor sua alma arranjar uma boa desculpa, senão... Boa-noite!
Uma estratégia exitosa, apesar de polêmica! Mas, como diria minha mãe, “quem não vai pelo amor, vai pela dor”.
OI, LÊDA, SEMPRE GOSTO TANTO DO QUE ESCREVE, DE COMO ESCREVE. OBRIGADA POR COMPARTILHAR POR MEIO DO BLOG!
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